Por que a réplica ainda incomoda tanto?
Da Rua 25 de Março às periferias, o que a pirataria revela sobre desigualdade, pertencimento e privilégio simbólico

O Brasil entrou oficialmente na mira do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Em julho de 2025, o republicano nos chantageou com uma tarifa de 50% sobre as exportações brasileiras e ordenou uma investigação comercial contra o país, citando desde suposta perseguição política a aliados de Bolsonaro até violações de propriedade intelectual. Em meio ao embate, a Rua 25 de Março, símbolo do comércio popular paulistano.

No relatório do Escritório de Comércio dos EUA (USTR), a região é apontada como um dos maiores mercados de produtos falsificados do mundo, com críticas à ausência de sanções duradouras e à suposta leniência brasileira com a pirataria.
Essa ofensiva dos EUA tem implicações comerciais e políticas graves. Mas enquanto Trump discute propriedade intelectual e balança a espada do protecionismo, uma outra discussão me vem à mente: para além das questões legais, por que a réplica incomoda tanto?
Quando é um tiktoker branco usando um “dupe”, ou uma influencer rica desfilando com uma bolsa fake de 7 mil reais, não tem problema. Mas quando a réplica aparece no pé de um jovem da periferia, ela vira caso de polícia. E aí, o problema já não é mais sobre lei. É sobre classe, sobre estética e sobre quem pode ou não usar aquele produto.
A réplica como linguagem de acesso
O que separa uma “réplica de primeira linha” de um original de R$ 1.799,99 nas prateleiras da Nike? Várias coisas, eu sei. Mas vamos para as disputas de significado. Mais do que o material ou o conforto, o que está em jogo é o que esse tênis representa. Na base da pirâmide social brasileira, a réplica pode não ser um atalho, mas o primeiro degrau.
Sempre me lembro de uma fala que me atravessou no início de 2024. No segundo episódio da segunda temporada do projeto Papo de Tênis (idealizado por Victor Santo - vale a pena conhecer), lá na Rap Burguer, um rapaz chamado Renato disse isso aqui:
“Se seu sonho de consumo é um tênis, lá na quebrada é assim: você tem primeiro um tênis réplica de primeira linha, depois vai estar melhor, vai conseguir o premium, e um dia, se Deus quiser, você pega um original.”
Essa fala, simples e direta, revela o quanto os objetos vestem mais do que estética: vestem desejo, autoestima e projeção. Quem calça uma réplica não está “enganando os outros”, mas tentando caber em um mundo que se construiu para ser excludente. E essa tentativa, quando vem de quem não deveria nem ousar esse pertencer, incomoda.
Conteúdos falando sobre a “cultura da réplica”, vindo dos mais diversos pontos de vista, não faltam. Às vezes em tom de deboche, às vezes propondo “alternativas mais baratas e originais”, como se fosse só uma questão de preço. Mas quem está dentro da cultura sneaker não quer calçar um take down e sabe muito bem a diferença, por exemplo, entre um Nike Air Force 1 e um Nike Court Vision.


Quem deseja um Nike Air Force 1 e conhece seu significado não se contenta com seu take down, o Nike Court Vision
Quando o cool vira brega
E o incômodo com o que o outro usa tem explicação. O antropólogo Michel Alcoforado fala sobre como as elites elegem seus símbolos de distinção: peças, marcas, cortes de cabelo, carros, viagens… Tudo isso funciona como código. Mas esse código tem prazo. Quando a estética se populariza, quando “todo mundo começa a usar”, ela vira brega.


Michel Alcoforado e seu novo livro, "Coisa de Rico", fruto de uma pesquisa de dez anos sobre as elites brasileiras
Esse é um dos mecanismos mais eficazes de controle simbólico no Brasil: transformar o gosto do pobre em crime estético. A mesma bolsa de grife que, nas mãos de uma mulher branca rica, é sinônimo de elegância, vira “ostentação cafona” quando aparece no ombro de uma manicure do subúrbio. Trago mais um trecho da fala do Renato:
“Por que ninguém quer mais Dunk Panda? Porque tem gente no ponto de ônibus de Dunk Panda.”

Claro que a réplica também entra aqui: como um código de acesso que é logo rechaçado quando ameaça furar o cerco. Não à toa, mais de 69% dos brasileiros já compraram produtos falsificados alguma vez, segundo o SPC Brasil, em pesquisa de 2015. E, entre eles, 83% afirmam que, se pudessem, comprariam os originais. Ou seja: não é sobre tirar vantagem, mas sobre alcançar um desejo inatingível.
De Dapper Dan à quebrada: a réplica como expressão cultural
A réplica não é um fenômeno recente. Nos anos 1980, Dapper Dan, designer icônico do Harlem, recriou a estética das marcas de luxo usando tecidos falsificados. Seu ateliê virou ponto de encontro da cena hip-hop nova-iorquina. E seu trabalho, mais tarde canonizado por Gucci e outros, sempre foi sobre uma coisa: apropriar-se de um símbolo e devolver com outro sentido.


Dapper Dan nos anos 1980 (esquerda); comparativo entre um original seu (centro) e plágio da Gucci, em 2017 (direita). A repercussão desta cópia foi longe e virou colaboração com o estilista no ano seguinte
No Brasil, essa lógica se repete e se atualiza e cada pisada com um Jordan “primeira linha” é um gesto de reinvindicação: “eu também posso ser parte disso”. Isso não significa que toda pessoa periférica consome réplica - a periferia também compra tênis caro, original, em lançamento. E nem que só se consomem esses produtos nas quebradas. Mas a réplica, nesse cenário, aparece como possibilidade real para muita gente.
Estética como disputa simbólica
Chantagem à parte, a pirataria que incomoda Trump é uma questão de fronteiras comerciais. A réplica que incomoda a elite brasileira, não. Não se trata de propriedade intelectual, nem de moral. Se trata de controle. De quem tem o direito de acessar os símbolos do luxo e de como se reage quando esses símbolos se espalham onde não deveriam.
A réplica, nesse cenário, é mais do que um produto paralelo. É um gesto de afirmação. E talvez por isso incomode tanto.
Porque o verdadeiro incômodo não é com a falsificação. É com a possibilidade de ver o outro - aquele que nunca foi convidado “para a festa” - ocupando estes espaços.