Por dentro da Avalanche

A revolução do streaming e a geração que transformou a música brasileira, na visão de Marcelo Monteiro

Por dentro da Avalanche
51 nomes para conhecer a novíssima música brasileira

Publicado em 2024, Avalanche: A revolução do streaming oferece um retrato da década que redefiniu a música brasileira. Com foco no impacto do streaming e no surgimento de novas categorias no mercado musical, o jornalista Marcelo Monteiro apresenta uma análise profunda da cena contemporânea e traça um panorama essencial da nova música brasileira.

Convidamos o autor para falar sobre o conceito de midstream, os desafios da cena independente e as mudanças no mercado fonográfico entre os anos 2010-2020, recorte temporal do livro.

O famoso "pra ouvir enquanto lê"

Antes de mais nada preciso te perguntar o porquê de escrever um livro físico nesse momento do mercado editorial e ainda sobre uma temática digital?

Comecei a pensar no Avalanche quando fechei minha participação no Amplificador, blog do Globo que foi referência para lançamentos da cena independente dos anos 2010. O blog já tinha rendido uma coletânea para Far Out de Londres, ‘Amplificador – Novíssima Música Brasileira: The Brazilian 10s Generation’ (2016), com músicas de 17 artistas (Passo Torto, Abayomy, Baggios, Fino Coletivo, Luziluzia, entre outros do país inteiro) e uma parceria com a Sony para um selo também todo dedicado a novos sons, o ’Novíssima’ (2016-2019). Lancei com a Sony outra coletânea, depois EPs e singles de artistas como Nomade Orquestra, Brvnks, Sara Não Tem Nome, Iconili, André Prando, Tagore e uma parceria internacional com a Flávia Coelho, brasileira radicada em Paris com super trajetória na Europa e ainda pouco conhecida no Brasil. 

Queria então fechar a década publicando em livro um resumão dos destaques da cena contemporânea desse mercado que chamamos de midstream, de bandas fora do pop e mainstream, que não necessariamente tocam em rádios e TV, mas tem público enorme no digital, nos festivais e frequentam as listas de melhores do ano da mídia especializada. Suspendi o lançamento durante a pandemia e resolvi estender os perfis, cheguei assim a 430 páginas, 150 com análises e entrevistas sobre impactos do streaming e 250 com os perfis. Em 2022, comecei a negociar com editoras e buscar como viabilizar o livro, com mais de 300 fotos. Levei um bom tempo também na liberação de imagens e crowdfunding. Pesquisa e escrita são só a primeira parte em um projeto desse tamanho. 

O mercado editorial de fato é muito difícil, cheio de desafios que muitas vezes inviabilizam uma boa ideia sair do papel, como falta de editais, captação, e claro as dificuldades de pesquisa e produção. Mas vejo as livrarias e sites recheadas de bons livros de música com lançamentos recentes e um novo cenário se consolidando. 

Avalanche - A Revolução do Streaming (2010-2020): 51 Nomes Para Conhecer a Novíssima Música Brasileira'. 430 páginas. 51 perfis. 300 fotos. 31 entrevistas + gráficos e análises

A escolha por artistas do midstream foi estratégica? Digo, seria possível traçar o mesmo panorama, falando sobre mercado, com artistas mais underground ou com artistas do mainstream?

A música contemporânea de renovação é o meu objeto de desejo e campo de pesquisa. Claro, eu cito também as transformações no mercado mainstream, a indústria fonográfica é formada por diferentes personagens, mas meu objetivo foi debater e analisar como o novo cenário do digital impactou o midstream, ouvindo artistas, buscando informações e números com muita pesquisa e analisado o novo mercado. 

Temos que pensar que antes não existia o caminho do meio, o que chamamos hoje de midstream: ou a banda entrava numa gravadora ou ficava no underground – ou pior, desistia. O chamado sucesso era para muito poucos. Claro que a concorrência hoje é enorme, mas as chances de lançar discos, criar público, tocar a carreira de forma independente com todas as facilidades do digital, tanto na produção dos discos quanto na divulgação, aumentaram muito nos anos 2010.

O que mantém uma banda viva continua sendo música, criatividade, shows, às vezes até um pouco de sorte, mas é necessário competência musical, muito trabalho e insistência, isso não mudou. O que acabou foi a receita única e quase obrigatória de chegar até uma gravadora, tocar no rádio e ter clipe na TV para atingir sucesso. Temos hoje um mercado onde as bandas se lançam sozinhas com todas as facilidades do digital e caem nessa enorme massa do mercado onde todos buscam espaço, cliques, views e relevância para criar público.

É tudo talvez muito mais batalhado, o ‘artista-polvo’ (termo criado pela Letrux na entrevista ao livro) compõe, grava, às vezes tem equipes numerosas, lança, divulga, marca shows, planeja turnês, lojinha, site, redes sociais, é muito trabalho (que antes era feito pelas gravadoras, por um custo alto, claro), mas as chances de chegar ao terceiro, quarto, quinto discos e sobreviver circulando o Brasil em um novo circuito efervescente de festivais de médio porte é muito maior. O próprio conceito de sucesso então mudou completamente, sucesso hoje é sobreviver da sua própria música, e muito mais nomes conseguem. 

Tem uma fala do Thiago França, do Metá Metá, no livro, em que ele fala:

“Mainstream não serve para gente, não serve para mim, e a recíproca é igualmente verdadeira: nós não servimos para ele, eu também não sirvo. Não sintam minha falta no mainstream, não sintam a nossa falta. Não se perguntem por que não somos o disco da semana, do dia, do minuto, em nenhum lugar. Não achem que somos injustiçados por não estarmos onde não devemos, onde não queremos. Meu tempo é outro”.
Anelis Assumpção | Foto: Victor Ronccally

O quão difícil foi escolher apenas 51 nomes para o livro? Quais os critérios usados?

Os critérios principais para escolha das bandas do top #51 foram impacto, relevância, representatividade na cena contemporânea e peso dentro do gênero musical. Procurei equilibrar ao máximo espaço para rock, rap, nova MPB, afrogrooves, synth-pop, rock-eletrônico, instrumental, e, inevitavelmente, gosto particular. Todos enfrentando juntos os desafios e transformações da indústria com a passagem do físico para digital. Característica então comum aos artistas que formam o que conhecemos como a cena da música contemporânea, ou da nova música brasileira, da música de renovação, ou novíssima, como preferi chamar, desde os tempos do Amplificador. 

Adotei também o método criado pelo Pena Schmidt, autor do prefácio do ‘Avalanche’, produtor de dezenas de discos do rock brasileiro dos anos 80, com passagem por várias gravadoras, ex-diretor do Centro Cultural SP, do Auditório Ibirapuera e ex-ABMI. Ele repassa todas as listas de melhores do ano de jornais, sites, blogs e cria anualmente a sua ‘lista das listas’ com os nomes mais citados usando critério de ‘reputação’ para tentar determinar outros recortes, além do mercadológico e radiofônico, para chegar a um ranking de artistas ‘bem-sucedidos-mais-comentados’ entre os que mais se destacam na música contemporânea brasileira. Não são os campeões de vendas ou execuções em rádio. São artistas que têm excelente ‘reputação’ por vários motivos, mas especialmente porque seus álbuns tiveram impacto nos ouvintes. 

Djonga surfando a multidão do Circo Voador Foto: Michelle Castilho

O subtítulo do livro é “A revolução do streaming” e, pensando em revolução como uma mudança do status quo, não acha que a centralização de poder e lucro nas mãos das grandes gravadoras é uma manutenção do que já estava posto?

A grande transformação na indústria dos anos 2010-2020, com impacto claro até hoje, foi na distribuição. As majors ainda tem muita força, os números estão aí, 70% do faturamento do mercado. Gravadora líder em faturamento no mercado, a Universal, superou em 2020 pela segunda vez na história a marca colossal de US$ 1 bilhão na arrecadação trimestral com o streaming, alta de 22% em relação a 2019 (em 2021, seu faturamento anual pela primeiríssima vez rompeu a marca de US$ 10 bilhões). Em 2020, o faturamento da gravadora com streaming chegou a 65,5% do total, quase 6 vezes mais do que o obtido com o físico. Números que colocaram não só a Universal como também as rivais Sony e Warner em outro patamar na indústria do entretenimento e na mira de possíveis compradores. 

As bigtechs também entraram no jogo, a indústria precisa urgentemente repensar a forma como distribui os lucros. Gosto muito da ideia dos apps para superfãs, do contato direto entre banda e seu público, sem intermediários.

Baco Exu do Blues | Foto: Victor Ronccally

Mas é inegável que bandas que antes teriam muita dificuldade de apresentar seus discos para um público maior, agora estão acessíveis nas plataformas de música. Não tem mais aquilo de ter que produzir milhares de CDs e distribuir para lojas, hoje é recorrer aos agregadores e seu disco está disponível nas plataformas. Ficou então mais fácil não só produzir como circular os discos. Isso é uma grande conquista da geração streaming e uma revolução inédita para o mercado. 

As plataformas podem não ser o principal canal de lucros para todas as bandas, a maioria na verdade tira maior parte do faturamento com shows. Mas é o streaming o motor principal para toda essa engrenagem rodar a todo vapor com novos nomes surgindo em uma velocidade e quantidade inédita na indústria. 

Acredito que o caminho do meio pelo midstream inaugurou uma nova forma de lançar, distribuir e monetizar, essa é grande mudança dos anos 2010-2020. 

Falando em monetizar, podemos considerar que o perfil de festivais, talvez principal fonte para artistas independentes, mudou muito nos últimos anos, certo?

Antes da pandemia os festivais independentes tinham line-ups quase que totalmente formado por bandas em ascensão. Depois, as marcas entraram muito fortes no mercado, criando outros festivais de grande porte no calendário, não do tamanho do Rock in Rio ou Lolla, mas para 10 mil, 30 mil pessoas, com investimento pesado em stands, ativações e consequentemente mudança no perfil dos line-ups.

O mercado ficou mais difícil para os independentes, a batalha segue dura. Criou-se um novo filtro dentro do independente para bandas que conseguem lançar, viajar e chegar às escalações em festivais. Há também ainda muito pouca oferta de casas de médio porte para quantidade gigante de novos artistas, mesmo em cidades como Rio, Belo Horizonte, Salvador e Recife. 

Foto: Tulipa Ruiz (Acervo Pessoal / Marcelo Monteiro)

Ainda sobre gravadoras, qual o papel delas dentro desse universo do digital e streaming?

As gravadoras tiveram que mudar totalmente seu papel com a nova forma de circular música com o digital e o streaming, hoje elas atuam muito mais como distribuidoras. A revolução digital começa em 1999 com fenômeno Napster, ícone dos tempos de pirataria. Com a revolução digital e o streaming, toda forma de distribuição mudou radicalmente: os artistas começaram a produzir mais fácil, distribuir, mesmo sem saber ainda como chegar ao público certo. A estrutura de mercado baseada nas majors como único filtro que escolhia as bandas que chegariam ao grande público teve que ser completamente repensada com o Napster.

O próprio nome gravadora se tornou obsoleto, o grande papel das majors, as três multinacionais que mais faturam na indústria fonográfica, Universal, Sony e Warner, as Big Three, passou a ser distribuição, marketing, consultoria artística e caminhos de mercado. 

O público, ao mesmo tempo, recebeu pelo streaming acesso a sons que vão muito além do cardápio mainstream e junto viu crescer e se consolidar um circuito de festivais de médio porte espalhado por todo o país em line-ups antes impensáveis, de 30, 50, até 100 bandas. Para os artistas, uma volta ao “do-it-yourself” da década de 70 e 80 com todos os requintes, facilidades, benefícios e também dificuldades pós-revolução digital.

Liniker, em 2019, por Andreia Cardoso

Como você enxerga o papel da pirataria nesse mesmo período estudado? 

As plataformas nasceram como solução da indústria para vencer a pirataria. Levou tempo, mas os apps de música conseguiram se estabelecer como forma segura e relativamente barata para se ouvir música. O mercado fonográfico recuperou o espaço, dinheiro e confiança perdidos nos anos 2000 com a pirataria e a derrocada das megalojas de varejo de CDs. 

Acho que a pirataria é sempre um tema recorrente, que merece alerta e preocupação. Vejo o streaming já consolidado, com indústria batendo recordes de faturamento, mas a pirataria segue viva. Segundo estudo de 2023 da IFPI, 47% dos brasileiros consomem música pirata por apps e sites não licenciados. Também em 2023, a Operação 404 de proteção a conteúdo, uma parceria público-privada, bloqueou um app com mais de 1 milhão de usuários ativos no país e quase 5 milhões de downloads. Há também o novo pirata da IA que cria músicas e treina seus robôs para arrecadar no streaming com direitos autorais de outros. É um novo campo que precisa de muita atenção, debate e regulamentação. 

Para o futuro, acredito que o streaming continuará como principal motor para circulação da música nos próximos anos até a invenção de uma nova tecnologia ou aprimoramento de ferramentas. A inteligência artificial certamente vai embaralhar o mercado e criar novos desafios, mas também oportunidades.

Boogarins, os donos do som que nomeou o livro Foto: Marcos Hermes

A avalanche já atingiu o pé da montanha? Ou ainda tem coisa para descer e soterrar?

Sempre tem, a força da música brasileira não cansa nunca de surpreender. Lembrei daquela frase, “de onde veio esse, tem muito mais”. E com distribuição, digamos, facilitada, praticamente todos os dias temos lançamentos, estreias, novas apostas. A música de renovação no país vive momentos de fartura e muita diversidade. Tem para todos os gostos e estilos, só ter curiosidade, buscar sites e jornalistas especializados que possam fazer um primeiro filtro, também ter o apetite de experimentar novos sons no streaming e aquela disposição para os festivais. 

Há certamente um grande desafio de criar mais espaços para música em casas de médio porte e programas de incentivo para artistas, produtores e empreendedores. Tem muito a ser feito ainda, não falta talento e sim mais estrutura para desenvolvimento de carreiras e formação de público e novos negócios. 

Atenção, aliás, para quem não acompanhou, ao evento que a Firjan organizou no Rio em abril chamado ‘O que falta para o Rio ser capital da música’. O produtor Leo Feijó, um dos coordenadores do curso Música e Negócios, da PUC-Rio, apresentou uma lista de 10 mandamentos muito pertinente que deveria circular demais, como a necessidade de uma Agência da Música, nos moldes da Rio Filmes, pesquisas anuais para acompanhamento econômico, formação profissional, linhas de créditos subsidiadas para casas de shows, fortalecimento da Rede Brasil na Funarte e Ministério da Cultura, criação de um departamento para internacionalização da música brasileira, e de editais para circulação de artistas em viagens e eventos como SXSW e Womex. 

Céu | Foto: Michelle Castilho

Até a próxima revolução, tenho certeza de que um número enorme de artistas vai chegar ao midstream. Como a gente escreveu lá em 2011 no alto do Amplificador, ‘Central de lançamentos’ do Globo: ‘A novíssima música popular brasileira vai muito bem e cresce saudável, espalhada pelos quatro cantos do país e pela grande rede. A tarefa deste blog é reunir os lançamentos de todos os estados e estilos, do rock ao tecnobrega’. 

O ritmo de lançamentos é tão intenso que assim que fechei o livro tive que me preocupar em deixar claro na formatação do texto que a história seguia correndo, que é um retrato e recorte dos anos 2010-2020. Deixei fora por exemplo discos de bandas com perfil no livro lançados pós 2020, não fazia sentido. E logo após o lançamento foram surgindo novos nomes, nem citados no livro, mas que eu não podia colocar justamente porque estavam fora do recorte que eu propus.

Fico muito curioso também para acompanhar o desenrolar de carreiras de artistas que surgiram nos anos 2010 como novidades e agora já consolidados enfrentam o novo desafio de se manter relevantes com novos discos. É o caso de bandas como BaianaSystem e Boogarins, artistas como Tulipa Ruiz, Anelis Assumpção, Luedji Luna, Ava Rocha, Metá Metá, Luiza Lian, todos já com mais de dez anos de estrada. E aí, aos poucos, vão se construindo obras de fôlego e longo prazo, poderemos reouvir trabalhos de 10, 20, 30 anos e ter essa visão distanciada que colocará os artistas em perspectiva com diversas fases da carreira e peso na música brasileira. Certo é que a música brasileira de renovação segue diversa, múltipla e talentosa. As pedras se soltaram e a avalanche vem cada vez mais forte.

Marcelo Monteiro e Letrux, a artista-polvo

'Avalanche - A Revolução do Streaming (2010-2020): 51 Nomes Para Conhecer a Novíssima Música Brasileira'. 430 páginas. 51 perfis. 300 fotos. 31 entrevistas + gráficos e análises. 

Texto e produção: Marcelo Monteiro. Prefácio: Pena Schmidt. Apresentação: Ricardo Cravo Albin. Patrocínio: Natura Musical. Apoios: Circo Voador, SIM São Paulo e Porto Musical Recife. Lançamento Numa Editora. Vendas nos sites da Numa, Amazon e livrarias espalhadas pela web. Na Travessa e Martins Fontes também nas lojas físicas.