Pirataria e preservação histórica
Quando a pirataria garante o acesso à cultura das gerações futuras

O ano é 2008. As calçadas do Largo do Japonês, região comercial na Vila Nova Cachoeirinha, Zona Norte de São Paulo, estão abarrotadas de ambulantes conhecidos também como camelôs. A placa improvisada em papelão diz “1 por 3 / 4 por 10” e ao lado, uma grade com dezenas de capas de filmes e jogos, presas por pregadores de roupa.
Essa foi uma imagem muito comum para quem viveu e/ou circulou por regiões comerciais do Brasil, principalmente nas periferias. A pirataria do audiovisual, softwares e jogos tomava conta em um momento em que as locadoras começavam a fechar as portas, e o acesso ao conhecimento sobre tecnologia e a computadores aumentava.
Apesar de ser complexo falar de um lado positivo da pirataria, é preciso admitir que ela foi e é fundamental para o acesso e democratização de conteúdos culturais como filmes, música, jogos, livros e séries. Sem ela, muitos de nós não conheceríamos boa parte das bandas que até hoje colocamos para tocar no Spotify, ou filmes que logamos no Letterboxd. Pior, talvez muitos deles nem seriam mais acessíveis hoje em dia.

Em um mundo completamente digital, falar sobre preservação histórica assume nuances muito mais complexas do que as vistas anos atrás. Além disso, a forma de se lidar com a pirataria também mudou e, se na década dos anos 2000, por exemplo, era quase obrigatório saber baixar álbuns e filmes, a entrada dos streamings no mercado e sua comodidade fez com que essa prática fosse abandonada aos poucos. A ideia de precisar se arriscar na internet em um momento que dados começaram a ficar cada vez mais valiosos só para baixar um filme que está no catálogo da Netflix, não valia mais a pena. Ou ao menos é o que se pensava.
O ponto aqui é, apesar de soar paradoxal pensar que uma atividade ilegal como pirataria possa ter um lado positivo na preservação de conteúdos e saberes, principalmente digitais, é fato que sem querer os players desse mercado cinza atuam como verdadeiros arquivistas, restauradores e promotores culturais, mantendo vivas histórias por vezes abandonadas por seus proprietários ou detentores de licença. Vamos por partes.
Obsolescência tecnológica
Provavelmente você já deve ter lido ou ouvido esse termo antes, talvez com um “programada” acrescido, mas caso não, estamos falando de como softwares, hardwares e produtos tecnológicos no geral estão se tornando cada vez mais ultrapassados e desatualizados. Essa realidade, que por vezes é uma prática intencional, faz com que diferentes comunidades se movam para garantir o acesso e uso desses itens. Tipo Cuba fazendo carros dos anos 80 rodarem até hoje, tá ligado? Então, tem uma porrada de gente mantendo softwares e hardwares ativos para garantir que inúmeros materiais não morram.

Por mais que o termo “tecnologia” hoje seja diretamente ligado ao digital, mídias físicas também foram e são afetadas pela realidade da obsolescência e substituição. Das fitas cassete passamos para os vinis, CDs, laserdiscs, DVDs e Blurays e finalmente às mídias digitais. Em grande parte, conteúdos foram migrados juntos, mas quem detém os direitos por vezes não vê sentido em manter esses acessos.
Ascensão e queda do streaming
A ascensão dos serviços de streaming de áudio e vídeo mudou a forma como se produz, distribui e consome entretenimento. Estimasse que, em 2024, as assinaturas globais de serviços de streaming chegam a 1,3 bilhão em plataformas de vídeo, e 600 milhões nas de áudio. Isso considerando pagantes. Como dito antes, essa popularização se deu pela ampliação do acesso à internet, aceleração da tecnologia e também da comodidade de ter uma biblioteca de música na palma da mão, sem precisar perder tempo caçando seeds no Pirate Bay.
É possível dizer que o streaming permitiu o acesso a uma variedade maior de conteúdo, incluindo de artistas independentes, que enxergaram um caminho de tocarem seus projetos de forma autônoma. Por outro lado, a algoritmização deixa em dúvida se essa diversidade é real, ou se estamos pasteurizando o perfil de consumo no entretenimento. Além disso, por mais que chamem de revolucionário, há de se lembrar que as grandes produtoras, gravadoras e distribuidoras, continuam com as maiores margens de lucro desse mercado.

Por fim, a massificação de plataformas, que nascem a torto e a direito a cada semana, geraram uma fadiga de assinaturas, além de exigir uma verdadeira organização mental para saber onde encontrar um conteúdo desejado. Não é incomum uma mesma série, por exemplo, ter temporadas em diferentes serviços de streaming. Isso, somado ao aumento de preços, e a insegurança em relação ao acesso desses conteúdos, o consumidor começa a ver o retorno à pirataria como um caminho interessante.
Guarde suas mídias físicas
OK, a ideia aqui não é ser alarmista e sabemos que as vendas de vinil e, veja só, até das fitas cassete estão aumentando, e por mais que o motivo seja a onda de saudosismo e newstalgia, mídias físicas estão se tornando cada vez mais preciosas. Isso porque não temos como garantir a propriedade de um item adquirido digitalmente. Por exemplo, se uma gravadora decide tirar um álbum do streaming, de que forma você vai ouvi-lo? Ou se uma desenvolvedora deixa de dar suporte para um game da Steam, como você vai acessá-lo? E-books? Mesma coisa. Ter uma mídia física em mãos significa ser, de alguma forma, proprietário daquele conteúdo, ou pelo menos garantir o acesso à ele.
Grandes empresas como Amazon, Sony e Steam se envolveram com polêmicas recentes que reacenderam questões como direito ao uso após aquisição de um item e só recentemente órgãos regulamentadores obrigaram as mesmas a deixarem isso claro. Você não está comprando o produto e sim a licença para uso e/ou consumo. Então ainda tem a discografia do Led Zeppelin em casa? Guarda. É sério.

Disseminação e construção de cultura
Diferentes culturas se moldaram através do consumo de mídias físicas e quando um recorte geográfico é feito, olhando para o Brasil, a pirataria é quase impossível de ser driblada. Olhemos para o skate, por exemplo, que tem no audiovisual uma das suas bases. Nos anos 90, Golden Era do esporte e da cultura, o acesso aos vídeos era feito basicamente através de cópias das VHS que eram trazidas do exterior. Sem isso, é difícil saber o que seria da comunidade do skate por aqui.
O mesmo vale para as relações que se construíram através de criação de playlists em fita cassete, com faixas gravadas das rádios, copiadas e distribuídas de mão em mão. Ações que fazem parte da memória de boa parte dos brasileiros e contribuíram para o acesso à cultura. Mais do que isso, o físico permite a troca, aumenta o ponto de contato com o objeto, ativa os sentidos, entre o consumidor e o item, mas também dele com a comunidade que consome e faz parte da cultura que está inserido. Coisas que podem ser emuladas no digital, mas dificilmente atingem o mesmo resultado.


Enquanto para uns a pirataria acaba com o mercado, para outros, é uma forma de revolução (à esquerda, selo de campanha anti-pirataria, do anos 80 | à direita, fita K7 do EP In God We Trust, Inc., 1981, do Dead Kennedys)
De quem é a responsa?
Não há como dizer que um ato ilegal como a pirataria se justifica pela ação involuntária de preservação, mas sua existência revela falhas no processo de circulação e alcance à cultura, e reconhecer esse papel nos ajuda a pensar e propor estratégias que garantam que o futuro continue a ter acesso à conhecimentos do passado.
Instituições, empresas e até criadores precisam reconhecer a fragilidade desse ecossistema e através de um trabalho conjunto construir métodos éticos e sustentáveis para preservação desses saberes. Enquanto isso, mesmo que sem querer, a pirataria continua prestando um grande serviço para comunidades no mundo todo.