Paladar: o impacto de Vale Tudo na economia cubana
Uma conversa sobre como as novelas brasileiras moldam cultura (e não só a nossa)

Quando eu estava na oitava série, lá em 2005, meu professor de geografia soltou uma daquelas curiosidades que a gente não esquece: no fim dos anos 1980, uma novela mostrava a trajetória de uma personagem vivida pela Regina Duarte que começava a vida dura, ralando, e terminava rica. O ponto de virada? Um restaurantezinho simples, aberto no quintal de casa, chamado Paladar.
Eu não sei se foi exatamente assim na Vale Tudo original. Mas é assim que me lembro do que aquele professor contou.
Na nova versão da novela, que já soma cerca de três meses no ar, Raquel (a personagem de Regina Duarte hoje é interpretada por Taís Araújo) também começa do zero e se vê no Rio de Janeiro vendendo sanduíches na praia. Depois disso, passa a cozinhar num bar, assume um restaurante dentro da hípica e, agora, negocia a compra de uma empresa de catering chamada “Paladar”. E o nome me levou diretamente para aquela sala de aula — e à matéria que, com certeza, não era sobre novela.

A aula era sobre Cuba. O contexto? A dificuldade que o país tinha (e ainda tem) para acessar produtos e cultura estrangeira, por conta dos embargos econômicos. Quando Vale Tudo chegou por lá, em meados dos anos 1990, foi uma pequena revolução. Não só porque a novela encantou, mas porque a personagem da Raquel acendeu uma fagulha num sistema travado. De repente, muitos cubanos passaram a sonhar com a ideia de abrir um restaurante no quintal, do jeito dela, na esperança de também mudar de vida. E muitos, muitos mesmo, batizaram seus restaurantes de... Paladar.
Hoje, em Cuba, essa palavra não é só lembrança de uma novela antiga. Virou categoria: paladar é como se chama um tipo específico de restaurante familiar. Tudo por conta de uma novela brasileira.

Uma ficção brasileira, um país em crise e um nome que pegou
Para entender o impacto disso tudo, vale lembrar em que momento essa novela chegou em Cuba. Vale Tudo foi ao ar no Brasil entre 1988 e 1989. Já em Cuba, sua exibição aconteceu em 1995, bem no meio do chamado “Período Especial”, um dos momentos mais difíceis da história recente do país. A União Soviética tinha acabado de ruir, e com ela foram embora os acordos econômicos que sustentavam a ilha. Resultado: crise total. Faltava combustível, comida, remédio e até luz elétrica.
Foi nesse cenário de escassez e tentativa de reinvenção que o governo cubano, pela primeira vez, começou a permitir algumas formas de iniciativa privada. A brecha era pequena, controlada, mas existia. E uma das permissões dadas foi justamente para que famílias abrissem restaurantes em casa. Literalmente. No quintal, na sala, na varanda. Com número limitado de mesas, cardápios restritos e uma boa dose de improviso.
E aí entra a novela. Mais especificamente, a personagem da Raquel. Aquela mulher brasileira, batalhadora, que vem “do nada” e acaba virando empresária, chegou em Cuba num momento em que milhares de pessoas estavam, também, tentando começar do zero. O nome do negócio dela, Paladar, virou uma espécie de senha. Um símbolo. E foi assim que essa categoria se construiu no país.
Não foi decreto, não foi campanha de marketing. Foi afeto, associação simbólica. A novela não só fez crer em uma trajetória possível, mas batizou um novo jeito de comer fora de casa.



Somente em 1995, 1.200 estabelecimentos foram registrados com o nome "paladar" em Havana, sem contar as outras cidades da ilha.
De exceção estatal a instituição cultural
Com o tempo, os paladares se espalharam por Cuba. Primeiro de forma quase clandestina, depois com regulamentação oficial. O nome, que nasceu como homenagem, virou categoria legal. Hoje, quando um turista vai a Havana e come num paladar, está, sem saber, entrando em um restaurante familiar, sim, mas também em um capítulo vivo da história da televisão brasileira.
Os primeiros eram simples, cheios de limitações. Muitos funcionavam com uma só família cozinhando e servindo. Não podia vender carne bovina, não podia ter muitos funcionários. Aos poucos, com novas flexibilizações na década de 2010, os paladares foram se sofisticando: menus elaborados, ambientação charmosa, foco no turismo gastronômico. Mas a raiz está lá: quintal, novela, sonho.



O charme dos paladares: uma tradição cubana que já tem 30 anos e começou com uma novela brasileira.
O que as novelas ainda fazem e onde mais elas já chegaram?
Se por aqui a gente já se acostumou com a ideia de que novela molda comportamento, linguagem e até eleição, talvez seja hora de olhar pra fora. Porque o que aconteceu em Cuba não é só um caso exótico ou uma curiosidade geopolítica. É um retrato de como nossas narrativas constroem sentido em outras geografias. A palavra paladar virou sinônimo de restaurante não porque era boa, mas porque, naquele momento, ela representava possibilidade.
E essa possibilidade tinha sotaque brasileiro, figurino dos anos 1980 e um plano sequência de superação que ainda pulsa.