Orgulho brasileiro

E como a cultura é arma fundamental contra o complexo de vira-lata

Orgulho brasileiro
Complexo de Vira-lata (2022), de Alberto Pereira | Drone: Ítalo Barreto

Parecia percepção pessoal a observação de que o famoso complexo de vira-lata brasileiro, aquele sentimento de que somos inferiores, e ressaltamos o que temos de pior, empurrando para o fundo do baú tudo o que realizamos de positivo, estava diminuído significativamente. Até que uma recente uma pesquisa comunicada pela DW, jornal alemão com redação brasileira, trouxe justificativas políticas e econômicas para esse fenômeno. Mas como por aqui a gente fala é de cultura, decidi pensar sobre qual o seu papel nesse entendimento de ser brasileiro, como um novo nacionalismo pode ser construído e a unificação de um país dividido pode ser alcançada através dela. 

O futebol como termômetro social

Primeiro, acho importante explicar o contexto de criação do termo complexo de vira-lata, que na minha opinião tem tudo a ver com cultura. Cunhado pelo escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, o conceito surgiu após a derrota do Brasil para o Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950. O trauma, vivido presencialmente por aproximadamente 200 mil pessoas presentes no Maracanã, após uma virada no final do segundo tempo, provocou um silêncio que marcou toda uma geração e, segundo Rodrigues, ultrapassou as linhas do campo e só mudaria após a conquista de 1958.

Por "complexo de vira-lata" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima

A gente sabe que em época de Copa do Mundo a união do país em torno da amarelinha é gigantesca e, apesar do desempenho pífio da seleção masculina nas últimas edições, e da cooptação da camisa verde e amarela pela direita política, é muito difícil não ver o período do torneio como um segundo carnaval. Em recente entrevista, Ronaldo e Romário contam como chegaram desacreditados em 1994 e 2002, anos em que o Brasil conquistou as 4ª e 5ª estrelas, e como o espírito do país mudou ao retornarem com os troféus para casa. Talvez a seleção masculina não tenha mais o mesmo poder de antes, mas o futebol ainda mostra sua capacidade de mobilizar o povo e romper divisas.

Caso mais recente talvez seja o da Copa do Mundo de Clubes, realizada nos Estados Unidos, na qual nosso país foi representado por Botafogo, Flamengo, Fluminense, e Palmeiras. Claro que é difícil dizer que todos os brasileiros torceram igualmente para os respectivos times, mas as vitórias sobre clubes europeus - Flamengo vencendo o Chelsea por 3x1; Botafogo surpreendendo o campeão da Champions League, PSG; e o Fluminense ao chegar nas semifinais - fez uma parcela significativa olhar com esperança para o esporte nacional, e torcer pela conquista dos nossos. Aquela ideia de que só o futebol europeu apresentava alto nível técnico não se mostrou absoluta e mais uma vez, o orgulho brasileiro tomou fôlego.

Virar boneco de Olinda é conquista de vida Foto: Nany Lima/Prefeitura de Olinda

O cinema brasileiro para além da sessão da tarde

As recentes conquistas do cinema nacional, com destaque para a campanha de Ainda estou aqui (2024), que resultou em prêmios como o Goya de Melhor Filme Ibero-Americano, Globo de Ouro de Melhor Atriz para Fernanda Torres e o inédito Oscar de Melhor Filme Internacional, impactaram não só o mercado audiovisual brasileiro, como a cultura e percepção em relação ao consumo das nossas artes. O carnaval, por exemplo, foi tomado por Fernandas Torres, memes sobre o bilionário Walter Salles e até a noite de premiação do Oscar se tornou um carnaval fora de hora, com os televisores ligados para saberem se o filme realmente venceria. 

Por mais que seja difícil dizer que o sucesso de Ainda estou aqui tenha mudado a estrutura do nosso cinema, o destaque dado pelos meios de comunicação, principalmente os de grande alcance, contribuíram para que outros casos semelhantes surgissem. Alguns meses depois, O último azul (2025), filme de Gabriel Mascaro estrelado por Denise Weinberg e Rodrigo Santoro, recebeu o Urso de Prata do Festival de Berlim e, mais recentemente, O Agente Secreto (2025), de Kleber Mendonça Filho, ganhou Melhor Direção e Melhor Atuação Masculina para Wagner Moura. Por mais que ainda não tenham sido lançados por aqui, os reconhecimentos já serviram de gostinho para o público que já era fã do cinema nacional, e também para quem começou a assistir agora.

Foto: Laura Castor/Divulgação

O endosso gringo

Todos os exemplos apresentados até aqui, para mostrar que a cultura brasileira tem contribuído para diminuir os sintomas do viralatismo foram, ou em contraposição ao que é produzido no exterior, ou passam pelo reconhecimento público dos gringos. Esse fato me desperta preocupação e me faz questionar a necessidade desse endosso pelo que vem de fora para valorização interna. Claro, isso acontece há décadas e em diferentes esferas, seja na música - não posso deixar de citar o BET Awards d’Ajuliacosta - nas artes visuais, nos esportes ou na moda, enfim, parece que só é bom e merece destaque se um gringo vai lá e fala: “isso aqui é bom mesmo, pode consumir”.Fruto de um histórico colonialista, não é da noite pro dia que isso muda, mas alguns casos próximos têm nos ajudado a olhar com mais carinho pro nosso produto, sem precisar do endosso alheio. A mais recente turnê de Bad Bunny, artista porto-riquenho, é um caso a ser observado.

O álbum Debí Tirar Más Fotos (2025) trouxe uma mensagem clara sobre valorização da cultura latino-americana, em especial a de Porto Rico, um território não anexado mas pertencente aos Estados Unidos. No projeto, Bad Bunny, ou Benito, mescla o gênero pelo o qual ficou conhecido, o reggaeton, à plena e a salsa, ritmos clássicos da ilha, além de colocar nas letras temas como gentrificação e perda de identidade cultural. Na faixa, Lo Que Le Pasó a Hawaii, ele traz um alerta para que Porto Rico não se torne o arquipélago, perdendo suas raízes em troca de um pastiche turistico construído pra gringo ver.

O projeto não se encerra no álbum e em ações como o clipe de NUEVAYoL, publicado no 4 de julho, feriado de independência norte-americana, o músico exalta os imigrantes latinos que construíram o país, ironiza falas do atual presidente Donald Trump e reconstrói a imagem de 25 de outubro de 1977, quando 30 ativistas porto-riquenhos escalaram a Estátua da Liberdade, expondo a bandeira de Porto Rico sobre o rosto de um dos maiores símbolos da cultura estadunidense. Junto, Benito anunciou uma turnê mundial sem incluir os EUA na rota e por fim, uma residência de 30 shows em seu país, sendo que vários destes são exclusivos para os locais. 

E como ficamos do lado de cá?

As intervenções tarifárias de Trump sobre o Brasil, impostas nas últimas semanas e motivadas pelas investigações às tentativas de golpe de estado, moveram o país e, de uma forma muito inesperada, conseguiram unir pessoas de diferentes perspectivas ao redor da nossa independência e autonomia nacional. Não que seja a primeira vez, mas foi preciso que um presidente de fora, de maneira explícita, metesse o bedelho em nossos negócios para que discussões básicas como alimentação de mercado interno e industrialização nacional chegassem às massas.

A ideia de que o Brasil é um país maravilhoso está longe de ser unânime, mas os recentes acontecimentos políticos, econômicos e culturais se mostraram potentes na construção de um orgulho popular. O sonho de sair daqui para morar no norte global, seja na América do Norte ou na Europa, tem se tornado mais racional e menos impulsivo. Questões como ser imigrante, clima, alimentação, subempregos e a falta do calor humano brasileiro, ganham peso e começam a mudar a balança na hora da decisão. É difícil falar de um nacionalismo positivo, e explicar o conceito e tema seria assunto para outra pauta, mas se a gente conseguir ao menos valorizar o que temos dentro de casa, sem que necessariamente o vizinho elogie primeiro, eu me dou por satisfeito.


ISMO
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