O skate entre o mainstream e o declínio: ascensão ou descaracterização?
No auge de sua popularidade, o skate "core" parece estar encolhendo

O skate sempre esteve à margem, nas ruas, nos picos improvisados, carregando consigo uma identidade contracultural forte, um símbolo de rebeldia e expressão individual. Mas nos últimos anos, essa narrativa tem mudado drasticamente. O que antes era visto como transgressor agora estampa vitrines da alta moda, aparece em comerciais de banco e tem espaço garantido no maior palco do esporte mundial: as Olimpíadas. Se, por um lado, essa ascensão representa um reconhecimento inédito e uma democratização da cultura do skate, por outro, seu núcleo original parece estar encolhendo. O número de praticantes tem caído, marcas tradicionais estão fechando as portas e o skate “core” – aquele que sempre existiu à margem – enfrenta uma crise global sem precedentes. Essa contradição levanta algumas questões: o skate realmente saiu ganhando com essa aceitação mainstream, ou foi cooptado por um sistema que suaviza sua essência? A moda de luxo e os grandes eventos esportivos impulsionarm a cena ou apenas sugam sua estética e energia para se manterem relevantes? E o jovem de hoje, mais digital, hiperconectado e vidrado em games, ainda vê no skate a mesma magia de antes?
Apropriação pela Moda de Luxo e Impacto no Mercado “Core”
Nos últimos anos, o streetwear, que nasceu nas ruas junto com o skate e o hip-hop, se transformou em um mercado bilionário. O que antes era uma estética espontânea, surgida da necessidade de se vestir bem para andar de skate ou se expressar na cena hip-hop, hoje é um segmento dominado por marcas que exploram a cultura da escassez e o hype para impulsionar suas vendas.
A nomeação de Virgil Abloh como diretor criativo da linha masculina da Louis Vuitton em 2018 exemplificou essa transição. Ele veio do universo do streetwear, fundou a Off-White e ajudou a transformar o mercado, levando a moda urbana para dentro das passarelas de Paris. Após sua morte, em 2021, a Louis Vuitton manteve essa conexão ao nomear Pharrell Williams como seu sucessor – um artista que sempre transitou entre a música, o skate e a moda. Ambos representaram uma nova era onde o streetwear se tornou a própria indústria da moda, mas essa transição também questiona: o quanto essa evolução beneficiou a cultura do skate e o quanto apenas capitalizou em cima dela?


Virgil Abloh e Pharrell Williams
Hoje, as grandes marcas de streetwear são muito mais pautadas por tendências do que pela essência do skate. O que era criado na rua e muito tempo depois chegava ao mainstream agora funciona ao contrário: as tendências vêm das marcas e influenciam as ruas. A estética, antes um reflexo de um lifestyle genuíno, agora é impulsionada pelo desejo de exclusividade e pelo status que uma peça limitada pode proporcionar. Marcas como Supreme, que nasceram dentro da cultura do skate, hoje vendem colaborações com Louis Vuitton, e os jovens que antes compravam camisetas pelo estilo e sensação de pertencimento agora estão mais interessados no valor de revenda.
Essa transformação tem um impacto direto na cultura do skate: ao invés de ser um espaço de autenticidade e criatividade livre, o estilo e a identidade do skatista passaram a ser influenciados por um sistema onde o que importa não é o lifestyle, mas sim o hype. O skate ainda influencia a moda, mas agora a moda dita as regras.
O Skate nas Olimpíadas: Quem Sai Ganhando?
A inclusão do skate nas Olimpíadas de Tóquio 2020 foi um marco histórico, proporcionando grande visibilidade ao esporte. Com skatistas se tornando celebridades globais e o público se conectando às histórias de jovens talentos, o skate ganhou uma exposição sem precedentes. Um dos maiores exemplos foi a Rayssa Leal, que, aos 13 anos, conquistou a medalha de prata e se tornou um fenômeno mundial, atraindo novos olhares para o esporte e despertando o interesse de patrocinadores gigantes. Mas será que esse dinheiro todo volta para o skate de alguma forma?

Além disso, essa inclusão levantou também algumas contradições. Uma das principais foi a obrigatoriedade do uso de uniformes das delegações nacionais, algo que vai contra um dos pilares fundamentais da cultura do skate: a autoexpressão. No skate, a moda e a identidade pessoal sempre caminharam juntas. O estilo de cada skatista – desde a escolha das roupas até os tênis e acessórios – sempre foi uma extensão de sua personalidade e de sua visão artística. As Olimpíadas, ao imporem uniformes padronizados, retiram essa liberdade individual e encaixam os skatistas dentro de um formato tradicional esportivo, afastando o skate de suas raízes e tornando-o mais semelhante a outros esportes convencionais. Isso levanta um dilema: até que ponto essa institucionalização do skate olímpico realmente respeita a essência da modalidade e qual o impacto disso a longo prazo?
O Fenômeno dos Pais “Coachs” e a Pressão pela Performance
Pra piorar, com essa crescente exposição do skate e a entrada de grandes patrocinadores, surgiu um novo fenômeno: os pais “coachs”. Antes comuns apenas no futebol, onde famílias apostavam tudo na carreira dos filhos em busca de ascensão financeira, agora esse comportamento também se vê no skate. Com a profissionalização do esporte e a possibilidade de ganhos expressivos através de patrocínios, competições e contratos publicitários, muitos pais passaram a enxergar no skate não apenas uma paixão dos filhos, mas uma oportunidade de investimento e mudança de status. Se isso, por um lado, pode impulsionar o surgimento e a performance de novos talentos, por outro, também pode esvaziar o espírito livre do skate, transformando uma cultura historicamente não convencional e autodidata em um ambiente de hipercompetitividade e cobrança desde a infância. O skate sempre foi sobre autodescoberta e progressão pessoal, mas até que ponto essa nova geração conseguirá manter esse ethos diante da crescente pressão para se tornar um “produto de mercado”?
Comportamento dos Jovens em geral e o Declínio na Prática do Skate
O comportamento dos jovens em geral tem mudado significativamente ao longo da última década, e a crescente dependência das redes sociais é um dos principais fatores por trás disso. O tempo médio que adolescentes passam no Instagram, TikTok e outras plataformas já ultrapassa cinco horas diárias, segundo estudos sobre hábitos digitais. Essa hiperconexão impacta diretamente o interesse por atividades físicas, como o skate, já que a atenção e o tempo livre dos jovens são drenados para o consumo passivo de conteúdo. A dopamina gerada por curtidas e comentários chega em segundos, enquanto aprender uma manobra nova pode levar semanas. Entre a recompensa imediata e o processo árduo, muitos acabam escolhendo o caminho mais fácil.
Além disso, a ascensão dos influenciadores digitais criou uma falsa ilusão para essa geração: a ideia de que é possível ganhar dinheiro facilmente apenas criando conteúdo com um celular. Se antes o sonho de muitos jovens era se tornar skatista profissional e viver daquilo que amam, hoje, a promessa de fama instantânea e monetização rápida supera a vontade de ir para a rua, errar, cair e evoluir no skate – ou em qualquer outra atividade que exija dedicação e esforço físico.
Perda do Apelo Contracultural: O Mesmo Destino do Punk?
O skate sempre foi um movimento de resistência, mas sua absorção pelo mainstream lembra o que aconteceu com o punk rock. Bandas como The Clash, Misfits e Sex Pistols, antes símbolos de rebeldia, hoje estampam camisetas vendidas em lojas de departamento, muitas vezes por pessoas que nunca ouviram um álbum dessas bandas. O que antes era um símbolo de resistência virou um acessório de moda genérico.



Fotos: Bandofshirts
Com o skate, o processo tem sido semelhante. O que antes era visto como marginal agora é usado em propagandas de bancos e campanhas de marketing de grandes corporações. Mas será que o skate, agora domesticado e integrado ao mainstream, ainda carrega a mesma força subversiva de antes?
Se o punk rock, antes agressivo e provocador, hoje é lembrado por camisetas vendidas em redes fast fashion, o que acontecerá com o skate? A cena underground resistirá ou veremos cada vez mais o skate transformado em um produto polido e “seguro” para o consumo das massas?
O Skate Precisa Continuar Criando o Futuro
O skate sempre foi sinônimo de subversão, atitude e vanguarda. Para não se tornar apenas mais um produto do mainstream, ele precisa resgatar seu lado mais provocador e contracultural, impulsionando novas narrativas que reforçem esses atributos e que ao mesmo tempo façam sentido para as novas gerações. A cultura do skate não pode ser engolida pelo mercado – ela precisa continuar sendo uma força de criação, de ruptura, não apenas um reflexo do que o mainstream deseja consumir. Isso significa manter-se cada vez mais autêntico, valorizar o corre da cena independente - marcas, videomakers, fotógrafos, mídias e skatistas - que vivem a cultura em sua essência, criar novos espaços de expressão e, acima de tudo, continuar sendo um ambiente onde a experimentação, a liberdade e o espírito contestador são o motor de tudo.



Registros do processo de construção do Entulho DIY, extraídas do instagram da crew
O futuro do skate não está nas vitrines ou nos palcos das Olimpíadas – ele está nas ruas, nas mãos dos skatistas que continuam ignorando os limites e redefinindo o que significa ser parte dessa cultura diariamente, criando crews, movimentos, fazendo marcas e vídeos independentes, estampando camisetas no quintal, construíndo picos DIY na raça e criando o novo que certamente será copiado lá na frente. Para assim, seguir remando.