O Japão inventou o consumo lento (e a gente não percebeu)

Enquanto o mundo corre atrás do novo, o Japão reverencia o velho. Consertar, repetir, guardar. Uma estética do desgaste que desafia o tempo, o hype e o algoritmo

O Japão inventou o consumo lento (e a gente não percebeu)
Essa matéria faz parte de uma série sobre o Japão. Ao longo de setembro, a ISMO publica uma sequência de textos que estou escrevendo antes da minha viagem para lá, a partir de pesquisa e escuta atenta. A ideia é trazer alguns olhares para o modo como o país constrói cultura, estilo e desejo sem precisar levantar a voz. Cada texto parte de um recorte específico, mas todos têm em comum o esforço de entender como o Japão influencia o mundo de forma silenciosa, precisa e persistente.

Consertar também é criar

Uma peça de roupa gasta, com costuras refeitas à mão, dificilmente seria exibida com orgulho em muitos lugares. Mas no Japão, esse tipo de detalhe não é apenas tolerado, ele é valorizado. A prática de consertar, de manter o que foi danificado, faz parte de uma lógica cultural que entende o desgaste como parte da trajetória de um objeto. Ali, reparar não é esconder o uso, é reconhecer que ele existiu. As marcas do tempo ganham status estético, mas também simbólico. Elas indicam permanência, cuidado, relação. Em vez de ser descartada, a peça ganha uma segunda chance, e com ela, um novo significado.

Bordado, cerâmica e o tempo como material

Esse olhar para o tempo tem raízes antigas. O sashiko, técnica de costura decorativa e funcional, surgiu como necessidade entre camponeses que não podiam desperdiçar tecido. Com pontos brancos sobre o azul índigo, criavam-se reforços que prolongavam a vida útil das roupas. Com o tempo, os pontos deixaram de ser apenas reforço e passaram a compor desenhos reconhecíveis. Esses desenhos, além de funcionais, se tornaram parte da linguagem visual das roupas. O que antes era apenas manutenção ganhou contorno estético, e as peças passaram a carregar não só memórias de uso, mas também um tipo de atenção e afeto artesanal.

Hoje, nas passarelas e estúdios de slow fashion, o sashiko reaparece como símbolo de uma moda que desacelera. Designers como Hiroaki Shitano (Chimala) e marcas como Kapital e Visvim incorporam o remendo visível como manifesto estético. O ponto é o oposto da obsolescência planejada: é permanência planejada.

O kintsugi, técnica tradicional de restauração de cerâmicas, representa de forma direta essa filosofia do tempo como aliado: transformar a rachadura em ouro. Literalmente. A técnica, originária do século XV, usa laca misturada a pó de ouro ou prata para restaurar cerâmicas quebradas. O processo de restauração é visível e intencional. As linhas douradas acompanham as rachaduras, não para escondê-las, mas para mostrar que houve uma quebra e que ela foi cuidadosamente acolhida. O objeto não volta a ser o que era, mas se torna algo novo sem perder sua história. Um prato restaurado com kintsugi, por exemplo, pode ser mais valorizado que outro intacto justamente porque carrega as marcas do que enfrentou e sobreviveu.

Ambas as técnicas se ancoram em valores como wabi-sabi (a beleza do imperfeito, inacabado e impermanente) e mottainai (o reconhecimento do valor nas coisas que ainda têm uso). E apontam para um mesmo princípio: o tempo não é inimigo da forma. O tempo é parte da forma.

Quando guardar é um gesto de respeito

Esse princípio se desdobra em práticas contemporâneas que resistem à lógica do descarte. Arquivos de moda, lojas de revenda ultraespecializadas, mercados de usados com curadoria quase obsessiva. Há uma atenção especial, no Japão, ao estado de conservação dos objetos, mas não no sentido de apagar o uso anterior. É o contrário: valoriza-se o uso bem cuidado, o tempo bem vivido, o desgaste preservado.

Em bairros como Shimokitazawa, em Tóquio, é comum encontrar brechós que tratam roupas como relíquias. As etiquetas descrevem não só a marca, mas a origem, o ano de fabricação, a história. E é possível perceber que, para muitos colecionadores e entusiastas, possuir um objeto usado é como herdar uma memória. Um tênis dos anos 1990, uma jaqueta dos anos 1970, um disco com dedicatória: tudo isso carrega contexto, passado, camadas. Uma linha que não se rompe com o tempo.

Ao tratar objetos usados com cuidado e atenção, o consumo ganha outro sentido. Em vez de comprar apenas pelo novo, há uma valorização do que já foi vivido. Roupas, tênis ou discos antigos são guardados e transmitidos como se levassem consigo partes da história de quem os usou. O importante deixa de ser acumular e passa a ser conservar, manter viva a memória desses itens.

Entre o desejo e a permanência

No Ocidente, o novo costuma ser prioridade. A próxima coleção, o drop limitado, o refresh constante. Vivemos sob a lógica do lançamento, onde o ciclo de desejo é acelerado e descartável. O produto precisa ser novo, mesmo que repetido. Precisa parecer inédito, mesmo que seja cópia. E o velho, por definição, perde valor.

O Japão parece seguir uma lógica diferente do consumo acelerado. Em vez de buscar constantemente o novo, há um esforço em aprimorar o que já existe. Essa escolha se manifesta em diversas esferas, inclusive na moda e no design. Por lá, manter algo por muito tempo não é visto como falta de atualização, mas como sinal de compromisso com uma estética pessoal e com a durabilidade das coisas.

Essa relação com o tempo transforma o próprio ato de consumir. Ele deixa de ser uma reação imediata à novidade e passa a refletir uma continuidade, um cuidado com aquilo que já foi escolhido. Isso sugere uma forma de ética cotidiana, onde o valor de um objeto está mais no seu uso ao longo do tempo do que na sua novidade.

O que permanece, nos molda

O que a gente ganha (ou perde) quando tudo precisa parecer novo? Talvez, perdemos a chance de construir afetos duradouros. De ver o tempo como aliado. De reparar ao invés de substituir. O Japão nos mostra que o tempo pode acrescentar valor, sem alarde, sem pressa.

E talvez essa seja a maior revolução estética que eles praticam. Uma revolução silenciosa, que costura o rasgo, remenda a memória, exibe a cicatriz. E nos lembra: beleza também é continuidade.

Se esse tema te interessou, continua com a gente: ao longo de setembro, publicaremos outros textos que expandem essa investigação sobre o Japão. Textos que seguem escavando o que nos atrai, nos move e nos atravessa quando falamos de Japão.

ISMO
Cultura em movimento

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