O Brasil que só existe nas telas

Como o país que vemos, o país que imaginamos e o país que o algoritmo entrega moldam o nosso cansaço coletivo

O Brasil que só existe nas telas

Semana passada eu estreei meu Substack com um texto sobre cansaço. Não o cansaço físico, aquele que o corpo reconhece, mas um cansaço digital. Um desgaste que nasce da lógica das plataformas e do ritmo repetitivo dos formatos, um movimento que exige presença constante mesmo quando não há nada de fato novo a acrescentar.

Naquele texto, escrevi sobre como a conversa em torno da cultura sneaker, tema que pesquiso e narro desde 2018, ficou engessada. A conversa acabou ficando repetitiva, com formatos que variam pouco e imagens que se renovam mais na estética do que no conteúdo - e olhe lá! Por trás dessa repetição existe um ruído constante, uma interferência que distorce, acelera e empobrece as discussões. Esse ruído nasce do próprio funcionamento das plataformas e da forma como o algoritmo decide quem fala, sobre o quê e para quem.

Percebi que não era só uma percepção individual e foi essa sensação de repetição e ruído que me levou a buscar dados que ajudassem a entender de onde vinha esse desgaste. Hoje existem cerca de 20 milhões de pessoas criando conteúdo no Brasil e menos de 5% conseguem viver disso. Um volume imenso de energia, pesquisa, tempo e ideia colocado em circulação para um retorno que, para a maioria, não acompanha o esforço. Isso aparece no meu cotidiano: vídeos que antes fluíam começam a pesar, não pela pesquisa ou pela escrita, mas pelo processo inteiro de produção que, muitas vezes, rende pouco alcance.

Foi nesse contexto que comecei a olhar para quatro estudos recentes: "Tá Quente, Brasil! 2025" da FutureBrand, "Brasil Corre" da Consumoteca Lab (2023), "A Cultural Snapshot of Brazil" da Canvas8 (2025) e "Brasilidades. Quantos Brasis cabem no Brasil?" da MindMiners (2025). A partir deles, entendi uma coisa que talvez estivesse na minha frente há algum tempo: o cansaço não vem só do fazer conteúdo. Ele vem do ambiente digital e da forma como ele molda a nossa percepção do país.

Três Brasis em disputa

Existe um Brasil que a gente vive, o Brasil real do cotidiano; um Brasil que a gente imagina, feito de símbolos, expectativas e narrativas; e um terceiro Brasil, aquele que o algoritmo entrega. Esse último é rápido, emocional, fragmentado e, muitas vezes, desconectado dos outros dois. O cansaço aparece quando tentamos existir nesses três espaços ao mesmo tempo.

O Brasil que se vive (o país do corre e do cotidiano)

O estudo "Brasil Corre" (Consumoteca Lab, 2023) descreve um país concreto. É o Brasil da informalidade e das múltiplas atividades que se sobrepõem. Um país onde o corre estrutura a vida, onde vínculos e relações comunitárias funcionam como rede de apoio. Esse território não aparece com tanta frequência nas narrativas digitais. Ele é mais lento, mais complexo e menos visual do que aquilo que viraliza.

Essa camada offline também pesa. Longos deslocamentos, jornadas divididas entre diferentes trabalhos, falta de previsibilidade e necessidade constante de adaptação formam um cenário de cansaço estrutural. Quando essa rotina se encontra com as exigências do ambiente digital, o desgaste se intensifica.

Esse Brasil real também se manifesta no cotidiano urbano e nas relações materiais que sustentam as dinâmicas digitais. O cansaço que sinto no ambiente online não substitui o cansaço offline. Ele se soma a ele. Essa sobreposição ajuda a explicar por que tanta gente compartilha essa sensação de saturação.

O Brasil que se imagina (símbolos, expectativas e narrativas)

A pesquisa "Brasilidades. Quantos Brasis cabem no Brasil?" (MindMiners, 2025) mostra um contraste interessante. De um lado, a imagem que os brasileiros fazem de si: natureza, alegria, povo criativo, resiliência. Do outro, a imagem que acreditamos que o mundo faz de nós: carnaval, violência, pobreza. Essa distância entre o que somos, o que achamos que somos e o que achamos que pensam sobre nós produz uma camada de tensão constante.

Esse Brasil imaginado aparece também em "Tá Quente, Brasil! 2025" da FutureBrand, que discute como a brasilidade se tornou tendência global, como símbolos regionais se transformam em estética e como a narrativa do país é disputada entre orgulho e desgaste. Nas redes, esse Brasil imaginado se multiplica. Ele é performado, editado e exportado em velocidade alta.

O Brasil que aparece na tela (e se impõe como verdade)

O relatório "A Cultural Snapshot of Brazil" (Canvas8, 2025) ajuda a entender o terceiro Brasil. É o Brasil que chega filtrado pelas plataformas. Segundo o estudo, o brasileiro passa em média nove horas por dia online, o que significa que grande parte da experiência nacional é mediada por telas.

Esse Brasil tem uma estética própria: rápida, emocional e inclinada à simplificação. Narrativas complexas são reduzidas a vídeos de quinze segundos, manchetes se tornam memes e debates estruturais se transformam em clipes de humor. A busca por viralização favorece conteúdos que provocam reação imediata. A nuance desaparece na mesma velocidade em que as imagens passam.

Essa lógica também incentiva a polarização. Algoritmos amplificam temas que geram engajamento alto e rápido, o que desloca discussões importantes para formatos e linguagens que não comportam profundidade. O resultado é um país percebido em fragmentos, quase sempre incompletos.

Em muitos casos, o Brasil algorítmico exagera elementos do Brasil imaginado e distorce elementos do Brasil real. O contraste entre os três Brasis cria uma sensação contínua de desconexão.

Onde os três países se desencontram

É difícil conciliar esses três Brasis. O Brasil real nem sempre corresponde ao Brasil imaginado. O Brasil imaginado nem sempre resiste ao Brasil algorítmico, que chega mais rápido e mais alto. O desgaste aparece quando tentamos acompanhar esse descompasso. Viver no país offline, no país simbólico e no país digital ao mesmo tempo exige uma atenção que, muitas vezes, não temos.

Para respirar fora do algoritmo

Escrever, para mim, tem sido uma forma de desacelerar essa sobreposição. Um jeito de recuperar nuance quando a timeline me oferece velocidade. Talvez o caminho esteja em reconhecer que não existe um único Brasil e que cada um deles tem impacto direto no nosso ritmo de vida. Quando entendo isso, o cansaço digital deixa de parecer pessoal. Ele se torna um sintoma do ambiente em que estamos inseridos e das disputas que atravessam o país dentro e fora das telas.


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