Mulambö: entre o local e o global

Um papo sobre casa e o trabalho que é ser artista

Mulambö: entre o local e o global
Tudo Nosso (2023), pintura realizada no Festival NaLata

“Nasci João e cresci Mulambö”, é como João Gabriel da Motta, artista visual nascido em Saquarema, costuma se apresentar. Mulambö faz parte de uma geração de artistas contemporâneos que se ancoram na cultura popular brasileira e seus símbolos para produzir uma arte que nasce do cotidiano, seja pelos materiais que usa ou as pessoas que representa.

O convite para essa entrevista surge no contexto da SP-Arte, maior feira de arte da América Latina, que aconteceu entre os dias 2 e 6 de abril, em São Paulo, e aqui, Mulambö expõe sua visão sobre o tão em alta mercado da arte e o fazer do artista.

Foto: Pedro Victor Brandão

Tu é um cara que circulou e circula por diferentes “rios-de-janeiro”. De Saquarema pra São Gonçalo, de Niterói pro Rio… Qual desses lugares você considera como casa?

Minha casa é Saquarema, minha história, minha família, meu trabalho, tudo vem daqui. Estabelecer meu atelier e a base do meu trabalho em Saquarema foi fundamental pra que eu pudesse assumir de fato sobre o que eu quero falar com o meu trabalho. Estar junto da minha família, na praia onde eu cresci e hoje poder dizer que sou um artista que produz na Praia da Vila em Saquarema é parte central de toda minha poética e subjetividade. É praticamente um trabalho também me afirmar daqui.

Percebo 4 grandes pilares no seu trabalho: família, cultura popular, como futebol e samba, a fé e o cotidiano. Como cada um deles se manifesta no seu processo criativo?

É difícil de separar como cada um se manifesta porque são todos muito entrelaçados. A ideia do meu trabalho é justamente mostrar toda essa complexidade e a riqueza das relações entre as nossas histórias, as histórias que acreditamos e as histórias dos lugares onde vivenciamos tudo isso. Então todos esses pilares acabam naturalmente aparecendo de uma forma muito natural porque a ideia é falar da vida e a nossa vida nasce justamente dessas experiências que se misturam.

O couro come (2022), acrílica sobre couro

Estamos na semana da SP-Arte, e uma recente declaração sua me chamou a atenção. Você comenta como só entendeu o que esse tipo de espaço pede quando foi convidado pra estar lá. Que experiência foi essa, como ela te impactou e o que de aprendizado ficou até hoje?

As feiras são universos muito particulares, todas as relações entre artistas, colecionadores, galeristas, curadores e outras pessoas que participam do processo são uma coisa que a gente só aprende vivenciando. Cada galeria tem a sua forma de funcionar, cada artista tem sua forma de trabalhar e até cada feira tem uma forma diferente de fomentar essas relações. Então, estar nesse ambiente de forma atenta a essas trocas é importante, principalmente para jovens artistas porque são as pessoas que ocupam esses lugares que movimentam e financiam a cena.

Você diferencia arte de galeria de arte institucional, arte comissionada etc? Essas possíveis diferenças mudam o seu processo?

Ser artista é um trabalho, então como qualquer trabalho existem algumas variáveis e alguns fatores que vão influenciar na sua forma de trabalhar. Por exemplo, quando produzimos algo mais institucional o público que vai se relacionar com esse trabalho é um público diferente daquele que vai se relacionar com um trabalho que pensamos para uma exposição numa galeria comercial que não necessariamente tem uma presença grande de visitantes, mas tem uma presença importante de colecionadores.

A circulação das nossas obras é o que nos sustenta, então é preciso estar atento a esses detalhes, a quem vai se relacionar com a obra, a forma como a pessoa vai ver seu trabalho e se essa obra tem ou não a intenção de ser vendida para uma coleção privada, ou para uma coleção pública, ou se é um trabalho efêmero e por aí vai.

O desafio é que a gente consiga equilibrar todas essas possibilidades e fazer com que mesmo que estejamos produzindo pensando num destino diferente, as obras precisam fazer sentido com a poética e trajetória do nosso trabalho. Uma obra minha para um museu, para uma galeria, para um colecionador, para uma exposição rápida, para um projeto digital, para uma ativação com uma marca que seja, precisa antes de tudo ser uma obra minha, ter minha assinatura e fazer sentido com meu trabalho. Essa é a parte complexa de tudo isso que envolve ser artista e fazer o trabalho movimentar fazendo sentido.

Perigo de gol (2015), colagem digital
Aprendendo a fazer redes com a minha vó (2024), giz de cera sobre madeira

Ainda sobre o aspecto comercial, obras de arte foram um dos ativos que mais valorizaram nos últimos anos. Você tem visto isso se refletir no trabalho de novos artistas e criadores periféricos?

Acho que esse crescimento recente do espaço que artistas periféricos vem ganhando acaba sendo fruto dessa valorização e, principalmente, também de um movimento muito grande e histórico de artistas que produziram na marra por anos e anos. Chega um momento com o passar do tempo, com a internet e outras ferramentas que ajudam a aumentar essa voz, que esses artistas acabam sendo inevitáveis. Ao mesmo tempo, as galerias, museus e tudo mais acabam entendendo também que há uma possibilidade de mercado para esses trabalhos e esse é um fator fundamental para que as oportunidades apareçam, uma chance de muita gente do mundo da arte ganhar dinheiro através da arte periférica.

Eu entendo também que ainda que já tenha bastante tempo, ainda é um momento inicial e de certa forma limitante em relação às linguagens e temáticas dos trabalhos que ganham mais espaço e também ao recorte geográfico onde estão as maiores oportunidades, que é no Sudeste, principalmente SP e RJ, mas é um começo importante que vai crescer cada vez mais. O Brasil é muito grande e existem artistas periféricos produzindo em todas as linguagens e formatos então ainda temos muito a caminhar.

É fundamental também que pessoas periféricas ocupem outras funções nesse mecanismo como curadores, diretores de museu, galeristas, produtores e tudo mais também e isso vai refletir cada vez mais em oportunidades que tratem com cada vez mais carinho o trabalho e a história dos artistas periféricos.

O penhor dessa igualdade (2022), pintura sobre pneus

Como um artista que passou pela academia, ao mesmo tempo que faz parte de uma geração de criadores que conseguiu driblar a necessidade de estar nesses espaços, qual o efeito da formação na sua carreira?

A minha formação tem uma trajetória muito específica, eu começo estudando História e mudo pro curso de artes quando eu já tenho um trabalho encaminhado, de certa forma. Então as maiores relações de aprendizado na minha construção como artista foram as que tive a partir da proximidade que tive com artistas como Carla Santana e Ana Bia Silva, principalmente.

Foi a partir dessas trocas que tive as experiências e oportunidades de formação que foram muito importantes para minha trajetória, como por exemplo a Escola Livre de Artes do Galpão Bela Maré e o programa de Formação e Deformação do Parque Lage, já que fui bolsista de ambos os projetos.

Então, eu acho que é fundamental, mesmo pra quem de alguma forma conseguiu atravessar isso sem estar nos lugares tradicionais de ensino das artes, buscar sempre alguma forma de aprofundamento, cursos, programas educativos, formações em outras áreas até, porque ser artista é também, estar em constante aprendizado e produção então se a pessoa tiver a oportunidade, estude, seja lá o que for, porque com certeza vai enriquecer o seu trabalho de alguma forma. 

E falando em educação, outra coisa que acho fundamental para o meu trabalho também e recomendo muito é se aproximar dos trabalhadores do Educativo dos espaços em que estamos trabalhando, porque é através deles que a exposição se mantém viva e aprendemos muito pelo olhar que a educação tem do nosso trabalho e da forma como as pessoas se relacionam com ele.

Foto: Daniela Paoliello

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