Melissa de Oliveira e o cabelo como construção de identidade
Na série "Cada Cabeça é um Mundo", a artista registra identidade periférica no Rio de Janeiro e Salvador
Quando teve que decidir entre um celular novo — em 2019, após o aparelho anterior ter sido roubado — e uma câmera fotográfica e, ao escolher o segundo item, talvez sem saber, Melissa de Oliveira estava definindo seu futuro. Cria do Morro do Dendê, complexo de favelas localizado na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, Melissa decidiu documentar seu cotidiano como forma de preservação da memória de um local há muito tempo negligenciado, apagado e que, quando retratado por quem vem de fora, era visto somente pela ótica da violência e da pobreza.
Hoje, a jovem que começou a clicar de forma espontânea, vê seu trabalho ganhar outros espaços e se tornou uma das vozes que reafirmam a potência criativa das favelas. Sua mais recente série, Cada Cabeça é um Mundo estampa a capa da Revista ZUM, do Instituto Moreira Salles e, para falar um pouco sobre o reconhecimento, seus trabalhos e próximas ações, a convidamos para um papo que você confere a seguir.

Bora do começo: antes da fotografia, como era sua relação com a arte?
Eu acho que meu contato com a arte começa com a música, sou rata do Soundcloud (risos). Eu sempre gostei muito de ir para baile funk, sempre gostei das equipes monstruosas, e toda a minha família, nas gerações anteriores, tem essa coisa com baile. Minha mãe ia grávida de mim pro baile. Então acho que ali já tinha uma faísca, sabe? Mas eu não trabalhava com nada assim, ainda não sabia que ia me tornar uma fotógrafa; realmente era só música.
A fotografia entra na minha vida num momento que eu tô ficando adulta e começo a olhar pras coisas de uma forma mais crítica mesmo. Aquele momento que começa a aparecer a consciência social. Primeiro eu comecei a me incomodar pela forma como eu via a cultura da favela sendo retratada nos veículos de comunicação, na grande mídia. Então comecei a pensar: “cara, e se eu começar a registrar, como uma pessoa que tá vendo o outro lado da moeda, a ótica de um de um morador?”

E nessa época você já se via como artista ou começou mais como registros do cotidiano?
Eu acho que quando eu comecei, eu me via mais como uma fotógrafa. É uma dificuldade que outros fotógrafos ainda têm, de se enxergarem como artistas também. Tem fotógrafo que só se vê como fotógrafo, que só entende o próprio trabalho como fotografia. Então no começo eu tava só fazendo uma documentação cotidiana, com esses incômodos, com o propósito de construir um arquivo de preservação da memória. E é uma coisa que faz muita diferença, porque a fotografia é muito inacessível, então, quem é que tem foto de quando era pequeno? Quem é que tem fotos de momentos importantes da família? É mais uma forma de violência, quando a gente tem a história apagada.
Então eu começo a documentar com esse intuito, eu não pensava tão conceitualmente sobre sobre o fazer artístico. Até o momento que eu fui convidada para expor a primeira vez, na Carpintaria da Forte D’Aloia (& Gabriel), na Escrito no Corpo. Foi a primeira exposição que eu participei, era uma coletiva, e ali eu tive contato com outros outros tipos de arte, com outros artistas. Eu nunca tinha pisado numa galeria, então a partir dali que eu comecei a me interessar em pensar uma pesquisa, uma poética, um conceito daquilo que eu tava fotografando. Comecei para além de um registro da minha vivência.

Esse seu primeiro contato com o mundo institucional da arte contemporânea, como foi e como é hoje em dia?
A primeira palavra que me vem assim é “impacto”, de uma realidade completamente distinta. Eu já estranhava, tipo, realmente existem colecionadores que dão tanto numa obra - um dinheiro desse na minha vida, nossa, muda muita coisa. Eu lembro que o primeiro dinheiro que eu recebi de venda, eu comprei roupa pra minha família toda. É muito louco.
Mas eu não fico mais impactada como eu ficava antes, porque já tem um tempo que eu tô vivendo isso, mas ainda assim é uma realidade muito distante da minha. Eu continuo morando dentro de uma comunidade com o mesmo padrão de vida. O reconhecimento veio, mas a minha vida não mudou. Hoje eu não moro mais com a minha família, mas eu moro dentro de uma comunidade, ainda passo pelas mesmas questões, quando tem uma operação policial, eu ainda passo pelas mesmas experiências que eu sempre passei… Então assim, entrar numa galeria, num lugar assim mais chique, não é uma coisa que me causa mais impacto. Eu me habituei a isso, mas ainda assim sinto muito distanciamento. Eu sinto que eu furei uma bolha, mas eu sei que eu não sou parte daquilo.

É possível dizer que existe uma via dupla no seu trabalho, no sentido de comunicar com quem está de fora da comunidade, ao mesmo tempo que é um registro pra quem é de dentro?
Cara, sim, eu acho que a preocupação é tanto para quem tá dentro quanto para quem tá fora. Primeiro porque começa com esse incômodo, né? Eu não acho honesta a maneira como as pessoas estavam colocando a favela. Ao mesmo tempo, também não acho justo que a gente não tenha uma maneira de preservar a nossa história e nossa memória. Claro que a minha preocupação maior é que quem tá ali dentro, o morador, ele tenha esse registro e ele goste desse registro.
Por exemplo, com a minha série sobre Grau e Corte, que começou em 2020 eu estava fazendo mais porque eu tava me divertindo e porque eu sabia que a rapaziada ali no evento ia gostar de ter alguém fazendo a cobertura para depois postar no Instagram. Então eu fazia a cobertura, postava uma ou outra foto no meu Instagram, mas a maior parte ia para eles. Então era uma coisa muito mais para eles, pros meninos que estavam ali empinando a moto, do que para quem tava fora. Para quem estava fora eu não sabia se as pessoas iam gostar. Então eu acho que primeiro é para quem tá dentro.
Um ponto de partida para fotografar também é porque eu ficava pensando: “cara, será que essa foto, essa pessoa postaria na rede social dela? Será que ela se acharia bonita?” Porque às vezes eu percebia que um fotógrafo de fora não tinha muito essa visão, ele quer fazer o que ele acha bonito para ele, mas eu acho que quem tem que se sentir bem, primeiramente, é a pessoa fotografada. Ela tem que estar confortável, ela tem que estar se sentindo bonita.





Edição do evento Argentina no Grau | Fotos: Melissa de Oliveira
Legal você falar sobre isso de beleza, porque sua série Cada Cabeça é um Mundo fala justamente sobre essa vaidade, principalmente masculina, que tem várias nuances. Como você chegou nessa pesquisa?
A maior parte dos meus registros eu fazia de uma forma muito espontânea, eu não pensava muito no por trás daquilo que eu tava fotografando. Eu via uma situação que me tocava e eu fotografava. Depois, à medida que eu comecei a pensar numa pesquisa, um conceito do meu trabalho, eu observei que na grande maioria dos meus registros eu tava ali no meio de outros meninos. E isso era porque eu vivia coisas junto com eles, eu tava dentro de uma barbeira porque eu ia cortar meu cabelo e que para mim é uma coisa muito importante na minha vaidade.
Eu comento bastante sobre isso, que na minha identidade, o corte de cabelo é tão importante quanto, sei lá, para uma garota que gosta, passar maquiagem. Eu preciso disso para me sentir bem, para me sentir confortável. Então, muitas vezes, o corte de cabelo protagonizava os meus registros cotidianos. E aí eu comecei a me dar conta de que aquilo não era só uma coisa de registrar o meu dia a dia, mas era uma coisa que também refletia quem eu sou, sabe?
E aí, juntando essa coisa da identidade, com esse desejo de preservar uma memória, eu comecei a refletir sobre masculinidades, como que isso se manifesta dentro da comunidade, como é uma comemoração, como é um momento vulnerável. E aí eu comecei a pensar: “e se eu e se eu catalogar esses cortes? Quais são esses cortes que estão sendo criados nas favelas do Rio de Janeiro?"


Fim de ano é obrigatório descolorir o cabelo | Fotos: Melissa de Oliveira
Por exemplo, o corte do Jaca, que é o mais popular aqui no Rio de Janeiro, que se popularizou no restante do país, nasceu no (Morro do) Jacaré. Mas ao mesmo tempo tem a outra versão que chama Do Manguinho, mas aí tipo, qual é qual? O que diferencia o Corte do Manguinho do Corte do Jaca? Como que se popularizou? Então eu comecei a pensar em catalogar esses cortes, porque eu acho importante que a gente tenha isso registrado. Isso é história! A gente já foi muito apagado.
Então eu pensei que, já que se isso vai virar um documento, eu preciso de registros em boa qualidade, que mostrem os detalhes, os cabelos em ângulos diferentes para que você entenda aquilo na totalidade. E o protagonista é o cabelo, não é exatamente a situação ali que eu tô vivendo, que já é mais o objetivo do meu trabalho de documentação. O protagonista é o corte, é a pigmentação…
E essa coisa de fazer como foto 3x4, o primeiro que aparece para mim como referência são aqueles pôsteres de barbearias norte-americanas, são mosaicos de fotos 3x4, que você olha e tem várias fotos do mesmo corte de cabelo. Você vai olhando na barbearia e às vezes tá sem referência de como você quer fazer seu cabelo, você olha no catálogo e pensa: "pô, eu quero isso".






Cada Cabeça é um Mundo, Salvador - SA | Fotos: Melissa de Oliveira
E como rolou de levar essa pesquisa para Salvador?
Veio a oportunidade de desenvolver uma pesquisa na Pivô Salvador, que é a residência que eu fiz em junho de 2024. Fui para lá, fiquei um mês trabalhando no bairro de Plataforma e no bairro do Uruguai, próximo da cidade baixa, com dois barbeiros, o Átila e o Moika Du Corte.
Antes de chegar em Salvador, eu já era fã do trabalho dos caras, já acompanhava e já achava uma parada muito sinistra, muito futurista mesmo. Favelado tem isso, ele é muito à frente do tempo. E é interessante porque as culturas são parecidas, elas dialogam bastante, do Rio de Janeiro e da Bahia, mas tem coisas que são muito únicas de cada lugar. Tanto que você olha para os cortes que são feitos nas periferias de Salvador e tem coisas que não são feitas aqui. O pezinho de morcego, que é o contrapé tipo uma moldura, o ratão, que é aquele aquele moicano meio Mad Max, enquanto que no Rio de Janeiro a gente faz uma versão do moicano que é mais mullet, que é o Moicatrem.
Então eu fui em busca de entender quais são esses cortes que estão sendo criados lá. Claro que com muito menos domínio, né? Eu não sou de lá, eu nunca tinha passado tanto tempo lá, então foi uma versão reduzida do trabalho, mas foi interessante notar as diferenças e as semelhanças dos cortes de cabelo, das periferias.


Cortes do Jaca | Fotos: Melissa de Oliveira
E como foi o processo de curadoria para a capa e o material que foi pra ZUM?
Cara, eu já tinha um contato com a ZUM, porque a gente tinha publicado uma matéria sobre a série do Grau e Corte no site. Inclusive, a Bárbara (Copque), que escreveu sobre o meu trabalho para a revista agora, também fez a matéria sobre o Grau e Corte. E o Thyago (Nogueira) sempre foi um incentivador, ele sempre gostou muito do meu trabalho e foi um cara que tava ali acompanhando de alguma forma também.
E aí quando a matéria do Grau e Corte foi publicada, a gente ia falar sobre cabelo naquela época, só que a gente acabou mudando os planos e a gente falou sobre o grau, porque aconteceu um evento na mesma semana, assim, eu fiz a cobertura, o que na verdade foi muito bom, porque esse tempo foi necessário para amadurecer esse projeto.
E aí o Thiago me convidou para publicar alguns retratos na edição impressa e eu fiquei felizona, né? Tipo, eu tinha muita vontade de fazer parte de uma publicação impressa, só tinha ido pro site, e eu acho que para um fotógrafo, um artista, é um lugar maneiro para chegar.
Inclusive, a princípio, só as fotos que eu fiz em Salvador seriam publicadas, e aí eu propus, eu falei: "Cara, e se eu catalogar alguns cabelos aqui no Rio de Janeiro, exclusivamente para essa edição, o que vocês acham?" Eles curtiram a ideia e aí eu trabalhei nesses dois lugares, Belford Roxo e no Complexo da Maré. E parte desse trabalho que vai ser publicado é inédito, são fotos que não foram para nenhum lugar ainda.
A foto (da capa) traduz perfeitamente o que eu tô querendo dizer, porque não tô falando só do cabelo, do resultado, mas também de toda uma coisa por trás, porque é um empreendimento de homens negros, é um empreendimento de homens da favela, que muitas vezes é uma alternativa para não ir pro crime, é uma alternativa para conseguir uma renda, conseguir trabalhar dignamente, sem estar sofrendo uma humilhação dentro de um emprego explorado. É uma alternativa também para uma pessoa que tá dentro de uma favela e quer se expressar artisticamente, porque tem muito barbeiro que não corta só cabelo, que é artista.
O lançamento oficial da Revista ZUM será durante o Festival ZUM, que rola gratuitamente nos dias 1 e 2 de novembro, no IMS Paulista. Vale conferir a programação completa e se estiver em São Paulo - indicamos fortemente que chegue junto.