De volta as raízes: quando o rap honra sua ancestralidade musical
Respeitar o passado é também reinventar o futuro

A música sempre foi uma arte de absorção. Desde os compositores clássicos até os beats contemporâneos, a inspiração e a reinterpretação caminham lado a lado com a inovação. Com o surgimento da música eletrônica e, principalmente, do hip-hop, o uso de referências deixou de ser discreto para se tornar ferramenta central de composição e identidade.
O rap, nesse contexto, se consagrou como um espaço onde tradição e invenção convivem. O sample — seu principal material criativo — permite não só infinitas possibilidades sonoras, mas também uma conexão profunda com a memória musical coletiva. É a partir dele que o passado encontra o presente em novos significados.
Nos álbuns recém-lançados de BK’ (Diamantes, Lágrimas e Rostos para Esquecer), Djonga (Quanto Mais Eu Como, Mais Fome Eu Sinto!) e Rael (Onda), essa ponte entre gerações fica explícita. Suas escolhas de samples e colaborações mostram que o rap brasileiro está mais do que nunca interessado em reverenciar suas raízes e fazer da música um território de encontro — entre artistas, entre estilos, entre épocas e mostram um entendimento profundo de que a cultura é um ciclo vivo, que se alimenta do passado para transformar o presente e apontar novos caminhos para o futuro.
BK’ e a construção de pontes
É impossível ouvir Diamantes, Lágrimas e Rostos para Esquecer e não notar o peso simbólico das referências musicais. O novo álbum de BK’, lançado no início de 2024, carrega uma extensa e intencional lista de samples de artistas da MPB, usados não como pano de fundo, mas como elemento narrativo central. O rapper não apenas evoca essas vozes — ele dialoga com elas.
O disco, descrito por BK’ como “um álbum de autocuidado”, mergulha em vulnerabilidades pessoais, mas faz isso criando um espaço coletivo de afeto, ancestralidade e reflexão. O uso de samples nesse contexto vai além da estética: é uma escolha poética e política.
Na faixa “Só Eu Sei”, a voz de Djavan aparece como um sopro de melodia em meio às dores expostas. Já em “Só Quero Ver”, Evinha ressurge com sua doçura vocal, ganhando nova camada de leitura — e atenção — de uma geração que talvez nunca tivesse ouvido seu nome.




Esse é o poder do sample no rap: resgatar artistas esquecidos, revalorizar vozes negligenciadas, criar pontes geracionais. O que aconteceu com Arthur Verocai nos últimos anos, está agora acontecendo com Evinha — e BK’ tem parte nisso.
O resultado é mais do que musical. É emocional. Um fã jovem do BK’ pode ouvir a faixa ao lado da mãe e encontrar ali um ponto de conexão raríssimo no universo do rap.
O sample, nesse sentido, é também afeto. É memória compartilhada. É construção de um novo tempo que não apaga o que veio antes — mas o amplifica.
Essas escolhas não são por acaso. BK’ mostra que está mais interessado em construir pontes do que em levantar muros. Seu trabalho posiciona o rap como um espaço onde o refinamento musical e a crítica social podem coexistir em harmonia.
Djonga e o afeto como resistência
Se BK’ se aproxima da MPB pelo lirismo, Djonga faz isso pela força do afeto, da ancestralidade e da espiritualidade. No disco Quanto Mais Eu Como, Mais Fome Eu Sinto!, o rapper mineiro convida Milton Nascimento para a faixa “Demoro a Dormir”, criando um dos encontros mais simbólicos da música brasileira recente.
Milton, com sua voz etérea e mística, amplia o campo da narrativa de Djonga — que já é potente por si só. A parceria não apenas emociona: ela legitima a ideia de que a trajetória da música negra brasileira é uma só, seja nos morros, nas quebradas ou nas montanhas de Minas.




Na mesma linha, a participação de Samuel Rosa em “Te Espero Lá” adiciona uma camada pop-mineira ao disco, provando que Djonga sabe transitar com segurança entre estilos, mantendo sua essência provocadora e engajada.
Rael e A Onda de Cassiano
Outro nome que se junta a esse movimento recente é Rael, com o lançamento do disco “Onda”. Já no título e faixa homônima, o álbum evoca diretamente Cassiano, ícone do soul brasileiro, que gravou a faixa “A Onda” em 1976.





Rael não apenas homenageia, mas reinterpreta o espírito da música de Cassiano, ao lado de Mano Brown e Dom Filó, trazendo para o presente toda a suavidade, groove e espiritualidade que marcaram a obra do artista. Ao fazer isso, ele posiciona sua própria trajetória dentro de uma linhagem musical que valoriza a voz preta, o amor, a reflexão e a resistência com delicadeza e firmeza.
Esse tipo de gesto é mais do que reverência: é afirmação de identidade, é mostrar de onde se veio para entender para onde se está indo.
Um caminho já trilhado por outros nomes
Esses resgates não são exatamente uma novidade, mas seu fortalecimento recente aponta para um amadurecimento na cena.Em 2019, Emicida, com AmarELO, reintroduziu Belchior para uma nova geração, entrelaçando rap, samba, música popular e poesia em uma obra de profunda sensibilidade e consciência histórica.
Marcelo D2 vem há décadas praticando essa reconexão como fundamento da sua estética. Em Desabafo, resgatou a cantora Claudia trazendo-a de volta para os holofotes, mas os exemplos vão muito além:
• Em Kabaluerê, trouxe de volta a força rítmica de Antonio Carlos e Jocafi.
• Em À Procura da Batida Perfeita, sampleou o violão envolvente de Luiz Bonfá.
• Em Abre Alas, reinterpretou a canção de Ivan Lins, mantendo sua potência lírica enquanto a inseria no contexto urbano e contemporâneo.
Mais do que inspiração, esses resgates são sinal de reverência aos grandes arquitetos da música brasileira — muitos deles invisibilizados pelo mainstream, mas fundamentais na construção da identidade sonora do país.
Com D2, essa ponte entre o rap e pérolas da música brasileira não é ocasional. É central à sua obra e ao seu discurso.O próprio Racionais Mc’s, sempre reverenciou os mestres da música popular brasileira, lançando seus hits costurados com samples de nomes como Tim Maia, Jorge Ben, Cassiano e Djavan.
Esses exemplos mostram que o rap brasileiro é mais do que ritmo e poesia — é uma tecnologia de reconexão. Um gesto de afeto, memória e afirmação.
O rap como guardião da memória cultural
Mais do que beats e punchlines, o rap se revela aqui como guardião da memória coletiva, capaz de atualizar discursos e sonoridades sem apagar sua origem.
É nesse espaço — entre a reverência e a reinvenção — que artistas como BK’, Djonga, Rael, Emicida, D2 e tantos outros constroem algo maior do que hits: constroem legado.
Ao abrir espaço e reverenciar nomes como Evinha, Djavan, Milton, Belchior, Claudia, Cassiano e Ivan Lins, esses artistas não apenas ampliam suas obras, mas ensinam o público a olhar para trás com respeito, e para frente com consciência.
Em tempos de alta rotatividade musical, onde tudo parece descartável, os grandes do rap brasileiro seguem nos mostrando que respeitar o passado é também reinventar o futuro.
E quando memória e inovação andam juntas, nasce algo ainda mais potente: música com alma, discurso com raiz e identidade que atravessa o tempo.