Cultura: o que o hype não dá conta de explicar
Quando tudo vira cultura, o que ainda tem significado?

Um clássico dos tênis pode ser descartado por "ter saturado". Um personagem digital de design duvidoso vira objeto de desejo por custar caro e esgotar rápido. Um coletivo lança um produto que celebra suas origens e é acusado de se vender. A que tipo de cultura estamos nos referindo quando tudo isso acontece?


Nike Air Force 1, acusado diversas vezes de estar "saturado" (esq.) e Labubu, hype que acabou tão rápido quanto surgiu (dir.)
A palavra "cultura" se popularizou como sinônimo de tudo que carrega alguma forma de narrativa. Produtos, marcas, pessoas e comportamentos passaram a se revestir desse termo como um selo de relevância, mas cultura não é embalagem - é processo. Stuart Hall, um dos nomes centrais dos estudos culturais, define cultura como um campo de disputa de significados. Um espaço onde se negocia o sentido das coisas, onde se constrói o que importa, o que é lembrado e o que é esquecido.
Cultura e tendência: duas velocidades diferentes
Dizer que cultura é maior que tendência é lembrar que elas não operam no mesmo tempo nem com os mesmos objetivos. A cultura se estrutura em processos simbólicos, atravessa gerações, se inscreve em memórias coletivas. A tendência, por sua vez, se alimenta do consumo acelerado, da obsolescência programada e da estética da novidade. É uma lógica que exige substituição constante, não permanência. Por isso, enquanto a tendência responde ao agora, a cultura carrega a capacidade de resistir ao tempo, de ser reinventada sem perder suas camadas de sentido.
O tênis como linguagem: nem só consumo, nem só moda
A cultura dos tênis escancara, talvez como poucas outras, a fricção constante entre o que é simbólico e o que é estratégia de mercado. Ela nasce de cruzamentos entre as ruas, os becos, os bailes e as quadras. Cresce com a música, a dança, a linguagem da juventude preta e periférica que usa o que calça para dizer quem é. O tênis, nesse contexto, não é acessório: é discurso.

Com o tempo, esse discurso foi sendo absorvido, limado, empacotado. O que era linguagem virou produto. E não qualquer produto: um objeto escasso, inflacionado, legitimado por listas de espera e selos de exclusividade. Nem todo tênis conta história, embora quase todos se vendam como se contassem. Alguns apenas alimentam o ciclo da novidade.
Mas não se trata de fazer juízo de valor. É possível gostar de tênis pela estética, pelo design, pelo desejo. O que importa é reconhecer que isso, por si só, não basta para configurar engajamento cultural. Cultura se faz com atravessamentos: com história, com contexto, com afeto, e ela continua agindo mesmo quando o modelo some das prateleiras. A tendência passa, já a cultura muda de forma, mas permanece.
A diferença não está apenas no que se consome, mas na relação que se estabelece com aquilo. No que se leva para a vida, mais do que no que se tem na coleção.
Quando cultura e mercado precisam coexistir
Não se trata de opor cultura e mercado, mas de entender que eles têm naturezas diferentes. O mercado pode manter a cultura em movimento, viabilizar inovações, conectar gerações. Mas só a cultura é capaz de atribuir sentido duradouro ao que é produzido. Sem ela, o consumo é apenas circulação de mercadoria.
Ninguém precisa ter algo para fazer parte de uma cultura. O pertencimento também nasce da escuta, da curiosidade, da vontade de entender o que aquele objeto, expressão ou gesto representa para quem vive aquilo de dentro. Na cultura dos tênis, por exemplo, essa relação não depende do drop mais recente ou da quantidade de pares na estante. O que conta é o tipo de conexão que se estabelece com esse universo: seja por afeto, por estilo, por memória ou por querer aprender mais. Estar na cultura é estar aberto ao que ela atravessa e transforma em quem se permite entrar.

Consumo cultural no Brasil: um desejo por significado
Uma pesquisa da Fundação Itaú com o Datafolha (2024) mostra que 97% dos brasileiros participaram de alguma atividade cultural no último ano. Isso aponta para um desejo ativo de conexão simbólica. Cultura não como vitrine, mas como forma de estar no mundo.
Esse movimento também ajuda a entender por que tantas marcas passaram a se posicionar como "culturais". Storytelling virou estratégia e narrativa virou valor agregado. O consumo passou a exigir mais do que estética: pede sentido, contexto, posicionamento. Mas há um risco claro nisso. Quando a cultura é reduzida a um adereço de campanha, ela perde sua potência como espaço de memória, resistência e criação coletiva.
Autores como Rodney William alertam que não se trata apenas de usar referências, mas de entender como, com quem e para quem elas são mobilizadas. Quando o retorno é apenas financeiro ou simbólico para quem está fora da cultura original, o que se chama de homenagem se aproxima demais da exploração.
Quando tudo vira hype, o que ainda é cultura?
O desejo de se conectar com a cultura tem gerado uma corrida por significados que nem sempre se sustentam. A dinâmica do hype, ancorada na escassez e na velocidade, muitas vezes substitui a escuta pela pressa, o vínculo pela posse, o sentido pela performatividade. Nesse modelo, produtos ganham valor simbólico não por sua história ou potência cultural, mas por sua raridade calculada.
O mercado opera em um regime especulativo, no qual a validação está menos ligada ao que algo representa e mais ao que ele pode render. Mas cultura não é sobre acumular, é sobre atravessar e ser atravessado, sobre sentido compartilhado e sobre a construção coletiva do valor. A cultura não exige carteirinha nem certificado, mas implicação real: estar disposto a escutar, a compreender os contextos, a reconhecer os processos que conferem significado.
Ela continua existindo mesmo quando a tendência passa e é justamente por isso que é maior: porque não depende da novidade para continuar viva.

Entre desejo e memória, o que dá sentido é a cultura
Cultura é maior que tendência porque ela não se esgota no agora porque não depende da validação alheia - ela é viva, compartilhada, e se transforma ao atravessar os corpos, os tempos, os territórios. Pode existir dentro do mercado, mas não se reduz a ele.
Ela conecta gerações, cria espaços de escuta, propõe sentidos novos para o que já parecia dado. Em um mundo obcecado pela próxima novidade, lembrar da força que há na permanência pode ser um gesto radical. E profundamente cultural.