Cartografia dos butiquins
Como um território do cotidiano contribui para a manutenção da memória cultural do país

Entre balcões e mesas enferrujadas, os botecos - ou butiquins, dependendo de onde você mora - são parte do cenário brasileiro, e contribuem de diferentes formas para as relações sociais dos espaços em que estão presentes. Parte das periferias, de alguma forma sintetizam elementos desses territórios: a arquitetura, a forma de se relacionar, de consumir, de se alimentar.
Apesar de parecerem imutáveis, os últimos anos têm se apresentado difíceis para este tipo de estabelecimento, que tem visto o seu modus operandi se transformar e sua estética ser cooptada por comércios que pouco ou nada tem a ver com o que os originais se propõem. Para entender a importância cultural desses espaços, é preciso entender o que os define.
Afinal, o que é um butiquim?
Definir um butiquim é ao mesmo tempo simples e complexo, pois se trata de um estabelecimento que compartilha códigos estéticos com outros comércios populares, mas que se baseia na questão de classe. Para Eduardo Freitas, conhecido como Preá, trabalhador da área da educação e assíduo frequentador, butiquins não nascem, mas se constroem a partir dos frequentadores das camadas populares e, não está ligado à uma imagem fetichizada de azulejos, cores e pratos em estufas.
Sobre o que caracteriza, o que unifica, acho que é essa perspectiva de classe. Para mim o botequim é forjado numa perspectiva de quem reconhece ele como butiquim. Acho que todo mundo abre um bar e ele se transforma em butiquim a partir de quem consome, quem pertence, quem frequenta. Eu acho que essa é a minha caracterização fundamental. Eu acho que ele pode ter todos os elementos objetivos, ter uma cerveja, ter uma comida e tal. Mas acho que esse elemento subjetivo que é as pessoas, a gente do butiquim, eu acho que é uma coisa que se conquista, que se forja.



Fotos: Preás
Já para Cadu Azevedo, nascido e criado em Volta Redonda, mais especificamente no Bar do Zé Carlos, seu pai, no qual trabalhou por anos e depois o utilizou como objeto para seu trabalho de conclusão no Curso de Cinema, muitas vezes os butiquins são calcados na precariedade, não de forma objetiva, mas por uma questão natural de sobrevivência.
O butiquim se dá na precariedade, no visceral, no autêntico e [...] essa sociabilidade ainda é alimentada pelas piadas internas que são construídas a partir da própria precariedade.
No Bar do Zé Carlos, assim como em outros bares citados por Cadu, a falta é o que permite que os frequentadores possam se sentir pertencentes. Não ter uma cadeira para sentar, ou um petisco para servir, faz com que sempre haja um movimento para que o encontro aconteça. A intimidade é tão grande que por vezes a relação pode ser bruta, sem muito trato ou polimento.

Mas importante não se enganar, e achar que esse perfil popular faz do butiquim é para todo mundo e uma terra sem lei, onde se faz o que quer, defende Preá. Pelo contrário, parece ser unanimidade que existem diferentes regramentos, códigos absorvidos por quem realmente frequenta cada um desses espaços e que funcionam, de certa forma, como ritos de integração. É o famoso saber chegar e saber sair.
Para mim é uma balela, uma tolice até essa coisa de que no butiquim pode qualquer coisa, "ah, a conversa de botequim pode dizer". Eu já fui e frequento botequim que é cheio de onda, não pode falar palavrão, você não pode ficar ali naquele lado do balcão, porque ali é do fulano, que não liga televisão, que não passa jogo do time tal, que o fulano de tal não entra porque ele está devendo fiado, ou seja, tem todo um regramento muito rígido a partir desse clima informal.
Potência criativa e silêncio
Cadu e Preá possuem visões diferentes, mas complementares sobre a potência criativa do Butiquim. Como realizador audiovisual, Cadu observa os butiquins como espaços de potência criativa e artística, um lugar que, a partir do silêncio ou da troca humana, a pessoa que vende sua força de trabalho pode reivindicar o direito de também ser artista, seja a partir da contação de histórias ou da reflexão silenciosa sentado no balcão do bar. A mentira, por exemplo, usada como forma de contar vantagem ou de acrescentar elementos em uma história para fazer dela algo mais interessante, é o mesmo artifício que, fora do butiquim, é usado por cineastas, compositores e escritores.
Já para Preá o silêncio chama mais atenção do que o papo solto e levanta a preocupação com o fetiche que se constrói sobre o espaço do butiquim, que ganha contornos de exótico e que é frequentado na verdade por pessoas normais, e que o artista é todo indivíduo que consegue se virar, se desdobra para sobreviver.






Fotos: Preá
Eu gosto dessa perspectiva do silêncio... É sempre uma coisa que todo mundo me pergunta "ah, mano, no butiquim que eu vou é falação, é uma alegria, a gente vai pra rir e tal" e cara, eu vou nos butiquins que evidentemente tem gente que se conhece, que conversa e tal, mas nesses que eu gosto de ir, geralmente é mais um ambiente que fica cada um na sua, conversa pouco, tem uma coisa mais de melancolia, daquele balcão que sustenta o peso da vida, do trabalho, desse universo masculino que versa pouco sobre sentimento e tal. Acho que o butiquim serve também um pouco sobre essa perspectiva.
Para mim, tanto o silêncio quanto a troca contribuem para a potência criativa que Cadu defende. O silêncio funciona como um momento para reorganizar as ideias, pensar, enquanto a sociabilidade permite oxigenar as ideias a partir da fala e da escuta ativa.
Claro que esses territórios são cheios de contradições, majoritariamente masculinos, conservadores, e que sob um olhar que desconsidera o contexto e a realidade de quem ali frequenta, pode muito bem ser lido como negativo. Mesmo pertencendo a uma geração mais nova, Cadu pouco se interessa em modificar esses espaços que, aliás, já sofrem com a emulação por parte de quem considera o ambiente hostil, mas admira esteticamente.
Apropriação estética e o futuro dos butiquins
Aqui pela ISMO já falamos sobre essa apropriação das estéticas periféricas por parte das elites, e há inúmeros exemplos de “botecos raiz” que apostam no chão de azulejo, cadeira de plástico, copo americano e fonte pintada à mão para atrair clientes. Em São Paulo e no Rio de Janeiro estão localizados em bairros nobres, muito distantes das fontes que buscam copiar.


Tem "botequim" com estrela Michelin hoje em dia
Esses que emulam eu acho uma parada deplorável. Acho que, na real, tem uns cenários que essa galera, uma elite que tem dinheiro, que tá na zona sul, não vai querer lidar, né? O butiquim é foda, é legal, todo mundo conhece, mas você vai lá beber no copo sujo? Vai ouvir as merdas que os coroas estão falando? Então você vai fazer um barzinho com uma pessoa te servindo, tal e vai pagar caro por isso.
Há inclusive uma preocupação se esses simulacros contribuem para o fim dos botecos e, para Preá, uma coisa não necessariamente está ligada a outra, afinal, quem frequenta um não frequenta o outro. São objetivos diferentes e que de forma prática não se atravessam, mas ressalta que há um perigo na forma como são retratados por quem é de fora, e não é incomum ver matérias ou conteúdos apresentando bares de franquia como botecos, o que gera uma imagem distorcida da realidade.
Já sobre o futuro, percebe mudanças e isso se reflete nas ruas. Entre os bares registrados por Preá, vários fecharam as portas e os novos modelos de consumo não estão alinhados com o modelo de negócio dos antigos estabelecimentos, não seguem a mesma lógica.



Fotos: Preá
Hoje, esse tipo de botequim, mais icônico do azulejo, do piso, que é geralmente tocado por um senhor, com mais de 60, 70 anos, isso aí vai acabar porque quem pegar, mesmo que for um neto muito afetuoso com o seu avô, vai transformar ele, infelizmente. Então ele como instrumento de memória, de história de uma cidade tal, acho que ele vai acabar.
Entre os que consomem, ou gostam de acompanhar, a dica é uma só: não fique só no like ou na foto, prestigie, consuma, tome uma ou algumas, porque porta aberta só existe com conta paga.