A segunda morte da MTV

O encerramento definitivo do projeto que ajudou a moldar a cultura jovem brasileira

A segunda morte da MTV
Foto: Letícia Moreira

Na última semana a Paramount anunciou o encerramento do seu portfólio de canais de televisão por assinatura, e entre eles está a MTV Brasil. Sim, aquele canal que talvez você nem lembrava que ainda existia mas que tem operado há 12 anos sob a batuta do grupo. O anúncio acontece no mês em que a emissora completaria 35 anos de sua primeira transmissão no país, e representa uma espécie de segunda e definitiva morte de um ícone que moldou a juventude, a música e a própria televisão brasileira. Agora, exorcizam o fantasma do que a instituição já foi um dia, o que restava da primeira encarnação, que entre 1990 e 2013, e que foi muito mais do que uma emissora de TV.

A MTV Brasil desembarcou por aqui no dia 20 de outubro de 1990, em uma parceria com a Editora Abril, operando em sinal aberto. O inicio foi um marco, já que o formato de programação era completamente diferente do modelo construído pelas grandes redes de TV aberta e o canal, que já fazia muito sucesso no exterior, chegava com uma fórmula simples mas muito redonda, focando em um público que até então não tinha muitas vozes ou imagens que o representasse nas telas: o jovem.

O casting improvável

Na gringa, o projeto MTV, sigla para Music Television, já tinha feito muito barulho e, de certa forma, reenergizado o mercado musical, pegando clipes que tinham perfil de material promocional e os elevando ao estado de arte, e principalmente, construindo uma cultura de consumo sobre esses materiais. Por aqui, o toque de mágica, além dos clipes é claro, se deu pelo modelo onde a emissora reuniu uma molecada com pouca ou nenhuma experiência com televisão para serem os Video Jockeys, ou VJ's. A ideia era se conectar ao público com leveza, e fugir da rigidez que a televisão tradicional tinha construído por anos.

Parte da primeira geração de VJ's

A primeira geração de VJ's contou com nomes como Astrid Fontenelle, Luiz Thunderbird, Zeca Camargo - sim, o apresentador do Fantástico -, Maria Paula, que para muita gente é lembrada por participar do Casseta & Planeta, entre outros. Toda essa galera tinha envolvimento com música ou cultura, mas não eram pessoas públicas e conhecidas, como o Zeca, por exemplo, que escrevia críticas musicais para a Folha de S.Paulo, mas até então era só um nome nas páginas do jornal.

Todo esse time jovem, bem informado e principalmente apaixonado por música foi quem deu a cara pro canal. A paixão trazia autenticidade e parecia que o pessoal estava lá porque queria e não por uma obrigação contratual. A inexperiência também jogou a favor, já que os vícios da televisão tradicional ainda não tinham pegado. A MTV poderia moldá-los como bem entendesse, e na real, podemos dizer que ela é que foi moldada por essas figuras.

A grade dos sonhos

O modelos de programação da MTV Brasil, assim como na gringa, era centrado na exibição quase ininterrupta de videoclipes, o que teve uma influência cultural gigantesca. Antes do canal, o acesso a videoclipes, principalmente os de artistas estrangeiros ou independentes, era mais restrito. O canal então se tornou a vitrine de músicos e bandas como Raimundos, Skank, Planet Hemp e Charlie Brown Jr., e até grupos mais estabelecidos como Titãs e Paralamas do Sucesso conseguiram surfar na nova onda. Programas e quadros específicos sobre gêneros ou subgrupos, como o Lado B — apresentado por Fábio Massari, Thunderbird e Kid Vinil — foram fundamentais para a divulgação de bandas mais “alternativas”.

O aspecto visual é outro elemento que pesou muito para o sucesso, já que desde a curadoria do material exibido até a direção de arte dos estúdios e programas, tudo era conectado com o espírito do tempo. Os projetos eram sempre muito pra frente, com cores e movimentos constantes, e até liberdade de brincar com o próprio logo rolava. O canal funcionava como um espelho da vanguarda cultural brasileira que se expressava pela música mas também pela moda, fotografia, cinema e artes em geral. As escolhas estéticas chegavam a ser pauta entre a comunidade de fãs, e não era incomum ver discussões sobre “o novo tema deste Verão MTV”. Aliás, usar o termo “fã” para falar de um canal de TV parece loucura, mas era real.

O canal também dava espaço e voz para muitas subculturas e por conta do perfil diverso e vanguardista, era compreensível que alguns públicos enxergassem naquele espaço uma certa validação. Skate, punk, o hip-hop, a comunidade LGBTQIAPN+ — que na época era só GLS — enfim, geral enxergavam na MTV uma plataforma de visibilidade. Programas como o Yo!, mesmo com todos os seus defeitos, trazia uma visibilidade ao rap nacional que era difícil de enxergar em outros meios de comunicação de massa. 

Uma estrutura moldada por quem faz parte

Durante a primeira encarnação (1990-2013), que é o foco deste texto, a MTV construiu várias gerações de VJ's, que serviram como fio condutor do canal e foram definidores da forma que a plataforma se comportaria. A lista de pessoas que passaram por lá e marcaram suas respectivas gerações é gigante, mas alguns nomes foram fundamentais para definir o que seria um VJ por excelência: Marina Person, Didi Wagner, Marcos Mion, João Gordo, Penélope Nova, Cazé Peçanha e Sabrina Parlatore são até hoje lembrados como aqueles que solidificaram a ideia do que é ser VJ.

Os programas também eram, de certa forma, moldados pela personalidade de cada um dos apresentadores. É como se primeiro eles definissem quem seriam os VJ's e depois construíssem o programa, levando em consideração o conhecimento, estilo e perfil de quem estava junto. O clássico Piores Clipes do Mundo se aproveitou demais do humor caótico do Marcos Mion, enquanto o Ponto P, da Penélope Nova, só poderia existir com ela, e não é por conta do nome. No fim do dia, o programa não era do canal, era de quem apresentava.

Acredito ser possível considerar que o modelo de produção de conteúdo que passou a ser padrão com a popularização da internet, com os youtubers e atualmente os influenciadores digitais, bebeu muito da fonte dos VJs. Eles realmente eram os influencers da época, ditando moda, comportamento, levantando bandeiras e defendendo visões de mundo. A MTV dava espaço para que essa galera se comunicasse sem muitas mediações, modelo que encontramos nas redes sociais. Se hoje tem quem sonha em ser criador de conteúdo e abre um TikTok com o objetivo de ficar famoso com dancinha, há alguns anos ser VJ era a coisa mais legal do mundo e dependendo da sua idade, muito provavelmente você já quis ser um.

Para se ter uma ideia da dimensão, o time virou personagem de desenho animado, quando lançaram a Megaliga MTV de VJs Paladinos, animação que os transformava em super-heróis na maior pegada X-Men, com poderes e tudo.

E a música, onde entra?

Nos tempos áureos do canal, a música era o carro chefe, e não só através dos videoclipes, mas das produções autorais dos canais. Tudo girava em torno do som e o canal foi foi capaz de promover grandes apresentações e, de novo, popularizar artistas e gêneros. O Acústico MTV, quadro importado da versão gringa do canal, é o responsável por algumas das versões mais lindas de músicas já consagradas na época. Legião Urbana, Gal Costa, Lulu Santos, Marcelo D2, Cassia Eller e até Sandy & Junior já tiveram suas músicas apresentadas em versões mais intimistas, na época que Tiny Desk nem era uma ideia.

Também não dá pra falar do impacto da MTV Brasil sem citar o VMB (Vídeo Music Brasil). A primeira edição do prêmio que se inspirava no VMA (Video Music Awards) da MTV americana, rolou em 1995 e até sua última edição, em 2012, foi não só palco de reconhecimento de artistas brasileiros, mas uma verdadeira celebração da cultura jovem. Totalmente diferente dos prêmios existentes no período, o VMB construiu uma autoridade em relação à produção audiovisual e musical, sem deixar de lado a irreverência e o caos que os deu força.

São inúmeros os momentos históricos que nasceram no palco da premiação, como o esculacho de Caetano Veloso pra equipe de produção quando tentava se apresentar com David Byrne, ou quando, em 1998, Racionais MC’s levaram o prêmio de “Escolha da Audiência” pelo videoclipe de Diário de um Detento

Nem só de música vivia a juventude

A quantidade de formatos e conteúdos criados pela MTV durante o auge era assustadora, e muitos quadros e programas são lembrados e replicados até hoje. O Rockgol, por exemplo, conseguiu fazer fãs chatos de rock se apaixonarem pelo esporte bretão, reunindo músicos para disputar um campeonato de futebol. A narração icônica de Marco Bianchi e Paulo Bonfá com seu bordão “tirem as crianças da sala”, faz qualquer Millenial e alguns Gen X se arrepiarem e rirem.

O humor, aliás, foi parte fundamental da construção de identidade do canal, e por mais que o gênero fosse muito utilizado na TV brasileira há décadas, o canal conseguiu ter originalidade e até ousadia. Hermes & Renato, por exemplo, só poderia existir ali, naquele contexto, com seu humor… duvidoso? É até difícil definir o que Boça, Joselito, Away e Dona Máxima faziam, mas o que importa é que dava muito certo. 

Supla e Toni Garrido batendo uma bolinha? Temos!

O caminho para o fim

Se tem uma coisa que não podem culpar a emissora, é de tentar se reinventar. Em seus últimos anos várias adaptações foram feitas e a renovação de VJs expõe muito isso. Titi Müller e Marimoon, figuras conhecidas da era fotolog, se conectavam com a galera que já rastelava a internet, enquanto Dani Calabresa e Marcelo Adnet atualizavam o modelo de humor feito na TV aberta. Apesar disso, a crítica principal é que o canal estava se perdendo e falava mais sobre comportamento, moda, e até notícias, e menos sobre música.

O período também não era dos melhores para esse tipo de conteúdo, já que a exibição de videoclipe migrou quase que totalmente para o YouTube. O formato, copiado com sucesso por canais como a MixTV/PlayTV, ficou obsoleto e com a popularização da internet banda larga ninguém mais precisava disputar o aparelho de televisão de casa para esperar passar o som do seu artista favorito.

O triste fim começou a ser anunciado aos poucos, com rumores aqui e ali, piadas internas na última edição do VMB, em 2012, e notícias sobre a crise do Grupo Abril e até um programa sobre isso foi feito, O Último Programa do Mundo, época que parecia que ninguém ligava mais pra nada.

A última transmissão rolou no dia 30 de setembro de 2013, data que a Viacom, empresa gringa dona da marca, pegou de volta os direitos e o canal encerrou as atividades. O clima era de tristeza e saudade, e o prédio da emissora, localizado no bairro da Sumaré, em São Paulo, foi visitado por inúmeros VJs, artistas e até fãs que tiveram a oportunidade de fazer o que quisessem antes das portas baixarem e o sinal ser cortado. O último videoclipe exibido foi Maracatú Atômico de Chico Science e Nação Zumbi, e a despedida ficou por conta de Astrid Fontenelle, que ao som de Orra Meu!, da Rita Lee, mostrou a bagunça que rolava nos bastidores. Ali se encerrou o canal como conhecemos.

O fantasma e o fim

De 2013 pra cá o canal ficou na mão da Paramount, e operava somente na TV por assinatura, e com uma programação que pouco lembrava a MTV Brasil, e seguia diretrizes globais. Os reality-shows tomaram o lugar da música e a relevância dos apresentadores sumiu quase que por completo. Para muita gente, a MTV nem existia mais, e não como forma de afirmar a transmissão original, mas porque esquecia mesmo que ainda tinha um sinal sendo transmitido na televisão paga. Os números eram ruins e a notícia recente de que a marca seria retirada do país de certa forma até demorou para chegar.

O que ficou então, é o legado mortal de uma emissora que conseguiu sintetizar as diferentes subculturas brasileiras, popularizar artistas e alimentar a juventude que, em uma era pré-internet, carecia de fontes acessíveis de informação adaptada à sua própria linguagem. A MTV foi berço de talentos que ganharam o mundo ao saírem de lá, foi laboratório de imagem e linguagem, onde a liberdade para testar formatos e estéticas gerou materiais icônicos.

O que virou a MTV dos últimos anos (sem puritanismo ou juízo de valor aqui)

Isso sem falar da memória afetiva e da história que foi construída. É impossível falar de toda a história feita pelo canal e que hoje tem boa parte do seu acervo audiovisual perdido, já que não foi feito um backup dos conteúdos. Claro que discos e DVDs, como os do Acústico MTV, ainda podem ser acessados pela internet e plataformas de streaming, mas é triste pensar que parte da história da cultura brasileira não está disponível e talvez se perca para sempre.

O anúncio do fim definitivo da MTV pela Paramount é como uma exumação de um projeto que, culturalmente, já estava morto e enterrado, mas que encantou e ensinou muita gente a amar música, arte e suas diferentes manifestações. O slogan do VMB de 2011 foi “a música não parou”, o que é verdade, mas uma das importantes estações que contribuiu pro crescimento dessa arte, fechou as portas de vez.


ISMO
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