A nostalgia como anestesia criativa
Quando o retrô domina todas as listas, o que isso revela sobre nossa relação com o novo?
Durante a edição 2025 da ComplexCon, um dos painéis mais aguardados (como sempre) foi o "Sneaker of the Year". Nele, um grupo de especialistas e convidados da cultura sneaker debate e revela, ao vivo, o ranking dos dez tênis mais relevantes do ano. A lista celebra lançamentos e influencia o que será lembrado, comprado e replicado. Desta vez, um dado chamou atenção: 8 dos 10 pares escolhidos eram reedições. Em outras palavras, silhuetas do passado, relançadas com pequenas alterações ou com novas colaborações. Dos dois que escapam desse padrão, um é o retorno de uma linha esquecida. E só um (o Converse SHAI 001) é, de fato, uma criação nova.



Converse SHAI 001. O único modelo inédito da lista
Poderia ser só uma lista, mas não é. Rankings como esse ajudam a moldar o que a cultura sneaker entende como relevante e determinam o que merece atenção, memória, desejo. E olha que eu não vou nem entrar no mérito da hegemonia do Swoosh ou das colaborações, vamos focar só nos modelos retrô.
Quando o novo quase não aparece, a pergunta é: por que estamos tão confortáveis em repetir?
Por que só o retrô recebe os holofotes?
O valor do retrô é inegável. Silhuetas clássicas carregam histórias, afetos, momentos coletivos. Muitas são vistas como mais do que tênis, são objetos que ajudam a contar quem somos. Mas quando a cena e o mercado passam a girar quase exclusivamente em torno dessas releituras, algo se estreita.
Bryce Wong, designer da equipe de footwear da Nike, comentou sobre isso após a publicação da lista da Complex. Em um post no Instagram, escreveu: “e tudo que tenho a dizer para a comunidade e para os curadores dessa cultura é: se vocês continuam premiando modelos retrô desse jeito, é só isso que as marcas vão continuar entregando. Então, para todo mundo que vive reclamando que a Nike não faz tênis novos, agora vocês já sabem o motivo.”


Bryce Wong, designer da Nike, se pronunciou sobre a febre pelos modelos retrô
A fala revela um ciclo de validação que envolve comunidade, curadoria e mercado. O que é celebrado vira referência. O que é visto vira tendência e quando a demanda se ancora no passado, o futuro vai sendo adiado.
A inovação está acontecendo, mas está sendo ignorada
A temporada 2025 não foi carente de lançamentos originais. Pelo contrário. Marcas investiram em silhuetas inéditas, tecnologias novas, colaborações que propõem outras narrativas visuais. A novidade está circulando. Mas não está sendo percebida com a mesma intensidade.
Não se trata de listar o que deveria ou não estar entre os melhores do ano. Mas de repensar os critérios que usamos para medir relevância. Em vez de só premiar o que já tem afeto consolidado, talvez seja hora de valorizar também:
- Inovação técnica: quando o tênis propõe novas formas de amortecimento, construção ou uso de materiais.
- Silhuetas frescas: que não dependem da nostalgia para existir.
- Relevância cultural: modelos que se conectam com contextos atuais e criam diálogo com cenas fora do radar principal.
Esses critérios não rejeitam o passado. Mas lembram que cultura também é evolução, e não só memória.

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O que trava a percepção do novo?
Silhuetas inéditas não vêm com manual de instruções. Elas chegam sem validação prévia, sem memes prontos, sem a aura de aprovação coletiva. Já os relançamentos têm tudo isso incorporado e são reconhecíveis, seguros e validados.
Para marcas, isso representa menos risco. Para quem cria conteúdo, mais alcance, já para o público, familiaridade. E o algoritmo ajuda a fechar o ciclo: imagens de retrôs geram mais engajamento, mais curtidas, mais compartilhamentos. Isso retroalimenta a lógica e se o que dá certo é o que já deu certo, por que tentar diferente?
O resultado é um presente onde a inovação parece invisível. E aquilo que não é visto, muitas vezes, deixa de ser feito.

Entre o conforto e a exaustão
A preferência por objetos do passado não é exclusividade da cultura sneaker. Ela reflete um comportamento mais amplo, especialmente entre millennials e Gen Z, que cresceram num mundo de promessas aceleradas e colapsos constantes. São gerações que lidam com múltiplas crises ao mesmo tempo: climática, econômica, institucional e subjetiva. Nesse cenário, o passado (ainda que longe do perfeito) se apresenta como território conhecido, uma espécie de zona de segurança simbólica.
Reassistimos filmes, revisitamos estéticas, relançamos tênis. Não só por gosto, mas por exaustão. A nostalgia funciona como válvula de escape, uma forma de reduzir a ansiedade. E quando tudo parece instável, repetir pode soar como cuidado.
Só que esse movimento, embora compreensível, tem seus limites. Quando o passado vira refúgio permanente, ele pode deixar de ser inspiração e passar a ser obstáculo. Isso afeta nossas escolhas, nossos repertórios, nossa forma de imaginar.
O que se perde quando só olhamos para trás
Ao ignorar propostas inéditas, a cultura sneaker corre o risco de se tornar previsível. Um território onde a repetição sufoca a surpresa. Onde as ideias não ganham tempo para respirar.
Isso afeta toda a cadeia criativa. Designers perdem estímulo para propor. Marcas passam a jogar seguro. Plataformas de mídia cobrem o que já tem engajamento garantido. E, aos poucos, a paisagem visual começa a empobrecer.
Se a cultura sneaker surgiu da mistura, da subversão e da criatividade, talvez o apego ao passado seja o que mais ameaça suas raízes.


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Para onde a gente quer ir?
Perguntar “por que aquele modelo não entrou na lista?” é pouco, é raso. Por que estamos tão apegados ao que já conhecemos? O que isso revela sobre a forma como consumimos, nos relacionamos com o tempo e buscamos sentido nas coisas?
Não proponho que a gente abandone o passado, mas que a gente não deixe que ele ocupe todo o espaço. Talvez a chave esteja em reaprender a olhar com atenção para o novo. Com escuta, com tempo, com disposição para descobrir.
Porque se todo ranking é um espelho, o que ele está refletindo? E o que deixamos de ver nesse reflexo?