A beleza do caos controlado nos mosh pits

A fúria e o registro de uma das comunidades mais pulsantes da música nas telas de Dan Witz

A beleza do caos controlado nos mosh pits
Big Mosh Pit, 2007

Mosh pit, roda punk, bate-cabeça, não importa o nome que você dê, a “aglomeração” que rola em shows é muito mais do que só desordem, mas a manifestação física da catarse que a música, não só como som mas como ação coletiva, pode proporcionar. É o ponto de ebulição onde a energia que sai das caixas se traduz em um ritual que, para quem vê de fora, parece só caos, mas para quem participa é cerimônia e até linguagem.

É nesse centro de colisão que o pintor norteamericano Dan Witz encontrou inspiração para uma de suas séries mais interessantes. Witz, artista referência na street art e conhecido pelos registros do cotidiano, dedicou toda uma série de seu trabalho para capturar de forma crua toda a beleza e confusão dos moshs. As pinturas feitas em tinta a óleo documentam e elevam esse momento tão simbólico para outro nível estético, ou como alguns diriam, “arte de verdade”.

Agnostic Front Circle Pit, 2014

Para contexto, o mosh pit, ou slam dance para os gringos, surge por volta do final dos anos 1970 e início da década de 1980, dentro da cena hardcore dos Estados Unidos, mais especificamente em Los Angeles, e depois se espalhou pelo resto do país. Reza a lenda, inclusive, que o nome vem de um show do Bad Brains, quando o vocalista H.R. gritou “mash it - mash down Babylon!” — algo como “esmague a Babilônia” — durante uma roda e, por conta do sotaque, entenderam “mosh it”. Se é verdade ou não, o que importa é que com o tempo a dança coletiva virou obrigatória em shows de música pesada.

Pode soar poético demais e até contraditório com o perfil bruto e cru do movimento, mas gosto de pensar que o mosh é uma celebração coletiva, uma egrégora, um momento em que todo mundo ali tá junto, sem barreiras, uma comunhão anárquica. E isso não se limita à um tipo de som, tanto que transcende o hardcore e outras linhas pesadas do rock para se infiltrar em gêneros cada vez mais diversos.

Nos anos 90, com a aproximação entre o metal e o rap, principalmente por conta de bandas de Nu Metal como Korn, Slipknot e Limp Bizkit, o gênero musical da cultura hip-hop começou a se apropriar do mosh e mais recentemente, principalmente em shows de artistas mais alternativos ou undergrounds, os moshs são certos de acontecer. 

Vision of Disorder Frieze, 2013

No Brasil esse momento de catarse coletiva não se limita ao underground e/ou subculturas e, por mais que não venha do mesmo movimento, é possível fazer um paralelo com as pipocas do Carnaval de Salvador, onde os foliões trocam socos de forma ao mesmo tempo agressiva e organizada. Aliás, o BaianaSystem é uma banda que leva os moshs muito à sério, sempre puxando as rodas durante seus shows, inclusive promovendo algumas exclusivas para mulheres, sempre com muita atenção para o que está rolando, o que, aliás, leva a outro ponto: a ordem.

Depois do último show do trapper Don Toliver no Brasil, muita gente que colou saiu de lá reclamando que foi atingido por jovens durante os moshs, e que não respeitaram quem estava lá com criança, tinha alguma limitação, ou mesmo só queria assistir o show de boas. A discussão ganhou as redes sociais e muitos adolescentes disseram que o show era assim mesmo e quem não quisesse participar nem deveria ir ao show.

É fundamental entender que existe uma espécie de etiqueta da roda punk, um código de respeito e ética construído e gerenciado coletivamente, com base no respeito mútuo. A regra básica é que, se alguém cair, o movimento para imediatamente para que a pessoa seja levantada e a roda continue. Não há intenção de machucar ninguém, e tudo acontece de forma muito bem orquestrada, com um pacto silencioso que, mesmo que seja sua primeira vez, é transmitido pelo olhar e pelo cuidado de todo mundo com todo mundo. 

Voltando ao Dan Witz, em seus mais de 40 anos de carreira construídos entre ruas e galerias, o mosh é só uma parcela — muito importante — do seu trabalho. Conhecido pelos registros hiper-realistas, o cara virou referência técnica da street art fora do grafitti ou da fotografia de rua. Apesar de falar da rua e com a rua, seu olhar costuma ser bem crítico sobre as condições de existência dentro desses ambientes, principalmente nas metrópoles, como em Nova Iorque, cidade em que reside desde os anos 1970.

No meio do caos que a cidade era no século passado, Dan teve o privilégio e o risco de viver a efervescência de diferentes culturas enquanto se entendia como artista. Na fase dos 20 anos, o então estudante de artes visuais também fazia parte de algumas bandas e sua vida transitava entre pequenos palcos cheios de garrafas vazias e galerias de arte com quadros dos grandes mestres renascentistas e barrocos.

Mosh Pit Study Anarchy, 2014

Impulsionado por essa energia, Witz decidiu explorar a beleza brutal dos moshs utilizando a maestria técnica da pintura à óleo. Tendo as fotografias de show como referência visual, a ideia foi captar as expressões congeladas dos corpos que se amontoavam, se distorciam e colidiam entre si. É a fração de segundo em que tudo acontece ao mesmo tempo durante o ápice de uma música.

É interessante pensar que a escolha da tinta a óleo como técnica traz uma camada de profundidade para um momento que é banal, algo perceptível em outras séries feitas por Dan Witz. Para quem observa os quadros, é como se aquele instante efêmero ganhasse contornos de grandiosidade, como os quadros de momentos históricos, de grandes líderes, impérios e suas ações no tempo. E nada passa despercebido ao olhar de Dan, que pinta os detalhes do suor, os músculos tensionados, os olhos arregalados e os cabelos bagunçados no meio da roda. Se Caravaggio pintou batalhas entre humanos, anjos e demônios, Witz coloca esses personagens com moicanos coloridos, botas e jaquetas de jeans ou couro.

Claro, a série de moshs feita por Dan não trata só de música, mas sobre o momento de liberdade controlada, e também como já dito antes, desse rito coletivo, ato comum que flerta com a estética da violência mas de forma simbólica apenas.

ABC No Rio, 2011

Ao imortalizar a roda punk, Dan Witz realiza um serviço fundamental para a cultura underground, trabalho que costuma ser feito por fotógrafos, mas que nesse caso permite alcançar outros espaços e círculos sociais, devido à escala que a pintura tem no meio das artes. De certa forma as telas funcionam como documentos etnográficos ao mesmo tempo que são uma homenagem ao período em que viveu intensamente a cena de Nova Iorque dos anos 1970 e 1980.

Novamente, tudo isso pode soar como romantização ou super-teorização sobre algo simples, mas o mosh é resistência à passividade do mainstream e aos valores neoliberais individualistas, já que é literalmente se jogar no desconhecido enquanto confia que o coletivo vai te proteger. O trabalho de Witz prova que, mesmo no caos, às vezes extremo, existe uma beleza, um código e principalmente uma conexão humana, mesmo que ela aconteça por meio da colisão dos corpos em catarse.


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