3NÓS3: ruptura em meio à ordem sufocante

Conheça o coletivo artístico que, durante a ditadura militar, subverteu a ordem e ocupou a cidade

3NÓS3: ruptura em meio à ordem sufocante

Em meio às sombras da ditadura militar no Brasil, quando a repressão tentava silenciar ideias e domesticar corpos, três jovens artistas resolveram agir.

Em 1979, surgia o 3NÓS3, um coletivo que faria da cidade de São Paulo não apenas cenário, mas suporte vivo para experimentação, resistência e poesia urbana.

Com gestos sutis e intervenções silenciosas, Hudinilson Jr., Mario Ramiro e Rafael França criaram uma rede invisível de arte pela cidade, rompendo a lógica da vigilância e propondo novas formas de existir e de olhar para o espaço público.

O 3NÓS3 provou que mesmo sob censura, a arte sempre encontra suas brechas.

A cidade censurada

O Brasil de 1979 ainda era território da repressão militar. A censura pairava sobre jornais, livros, exposições e manifestações culturais. A cidade era policiada, tanto fisicamente quanto simbolicamente.

Mas enquanto uns controlavam as grandes narrativas, pequenos gestos de resistência começavam a germinar nas margens.

O 3NÓS3 nasceu dessa brecha: uma resposta ao controle dos corpos e das imagens, uma recusa em aceitar a cidade como um espaço neutralizado.

Ao fundir arte, política e espaço urbano, o coletivo desenhou outra cartografia, feita de pequenas rupturas e grandes significados.

Xerox, corpo e poéticas de rua

O 3NÓS3 entendia que para escapar da censura, era preciso reinventar não apenas o que se dizia, mas também onde e como se dizia.

Em seus quatro anos de existência, realizou dezoito intervenções públicas, todas carregadas pela força da transgressão, da ilegalidade e da manifestação de práticas e pensamentos marginais aos processos artísticos oficiais.

As ações se manifestavam em intervenções noturnas em muros e mobiliário urbano, fotocópias coladas para multiplicar ideias, arte-postal que contribuía na propagação das ações do grupo e performances anônimas, onde o acontecimento valia mais que a autoria.

Cada gesto espalhava pequenas bombas poéticas, rompendo a monotonia e abrindo fissuras no concreto da cidade.

Uma das intervenções mais marcantes foi “Ensacamento”, realizada em 1979.

Durante uma madrugada, o grupo ensacou 68 cabeças de monumentos históricos da cidade de São Paulo, fazendo uma alusão direta à prática comum durante interrogatórios no período do regime militar, em que cabeças de presos políticos eram cobertas com sacos, induzindo ao sufocamento e preservando o anonimato do torturador.

No dia seguinte, os próprios artistas assumem o papel de moradores indignados, telefonando para redações, denunciando a ação dos “vândalos” e cobrando explicações da imprensa sobre a intervenção, o que garantiu à ação cobertura de mídia massiva.

A apropriação da técnica do xerox também foi fundamental. Reproduzindo imagens de maneira rápida e barata, o coletivo escapava das amarras institucionais e criava novas redes de circulação para suas mensagens.

Para o 3NÓS3, a rua era laboratório, galeria e manifesto simultaneamente.

Pequenas rupturas, grandes significados

Em vez de grandes protestos explícitos, o 3NÓS3 escolhia o deslocamento sutil.

Um cartaz anônimo, uma imagem deslocada, tecidos vermelhos ocupando espaços incomuns convidavam o transeunte a estranhar a rotina e ressignificar o que antes parecia inofensivo.

A arte do grupo não buscava o choque, mas a rachadura discreta, aquela que se infiltra sem alarde e cresce por dentro.

Cada intervenção era uma aposta na potência da curiosidade, da dúvida, da inquietação silenciosa.

Na cidade controlada, qualquer pequeno desvio era, para eles, um ato revolucionário.

O legado 3NÓS3

Embora suas ações tenham sido efêmeras e muitas vezes realizadas sem registros oficiais, o impacto do 3NÓS3 atravessou gerações.

O coletivo abriu caminho para a arte urbana contemporânea brasileira, do graffiti aos lambe-lambes, e ensinou que a cidade poderia ser apropriada, questionada e recriada, sem pedir permissão.

Hoje, o nome de Mario Ramiro permanece ativo na cena artística. Hudinilson Jr. e Rafael França, que já partiram, deixaram obras e ideias que continuam a inspirar coletivos, artistas de rua e movimentos culturais que fazem da cidade um campo de batalha poética.

Mario Ramiro, Rafael França e Hudinilson Jr. (1980) Foto: Vera Chaves Barcellos

O 3NÓS3 nos ensinou que, para resistir, nem sempre é preciso empunhar uma arma na mão. Às vezes, basta colar uma imagem na madrugada, cobrir uma estátua, alterar a paisagem comum e semear questionamentos.

Mais do que ocupar as ruas, o grupo redesenhou o próprio sentido de presença no espaço público, expandindo os limites da arte e da insurgência.

Enquanto houver cidade, haverá fissura. Enquanto houver opressão, haverá arte conspirando nos subterrâneos. Enquanto houver repressão, haverá corpos prontos para reinventar o espaço e a alterar os rumos da história.


ISMO
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